PERSONALIDADES

Testemunhas da morte: o trabalho de coveiros como linha de frente da pandemia da covid-19

Coveiros Heraldo Luiz Machado e José Wilson Pereira, que atuam no Grande Recife, contam que, mesmo com anos de experiência, nunca haviam presenciado despedidas tão tristes como as das vítimas do novo coronavírus

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Katarina Moraes

Publicado em 16/05/2021 às 8:00 | Atualizado em 16/05/2021 às 11:36
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Costuma-se dizer que a ‘morte’ é a única certeza da vida. Curiosamente, é também o momento para o qual ninguém parece estar preparado. A palavra silenciada, dura e rodeada de mistérios nunca veio tanto à tona quanto durante a pandemia da covid-19. Ao invés de cada família sofrer, por vez, a dor do luto, ela agora é coletiva; até para quem não perdeu alguém próximo. No Brasil, até este domingo (16), já são 435 mil histórias e sonhos enterrados pela devastadora doença em um ritual frio, que não permite o último adeus. Desse momento, participam os coveiros Heraldo Luiz Machado e José Wilson Pereira, que, mesmo com anos de experiência, nunca haviam presenciado despedidas tão tristes.

Há quase 34 anos, Heraldo, de 64, realiza, todos os dias, no Cemitério de Santo Amaro, no Centro do Recife, a cerimônia que ninguém quer viver. Ele conta ter visto o serviço aumentar a partir de 2020 com a chegada do novo coronavírus e ficar ainda mais comovente pelas exigências sanitárias que o sepultamento de vítimas da doença exige. “Se morre alguém de covid, não pode ir todo mundo da família, o número é contado e ainda fica um distante do outro. A pessoa já perdeu um ente querido e passa por uma situação dessa, é dose. Acho mais difícil se despedir, porque não vai poder ver a pessoa pela última vez com o caixão fechado.”

O operador de campo José Wilson Pereira, de 43 anos, título pelo qual são chamados os coveiros do Cemitério Morada da Paz, em Paulista, na Região Metropolitana do Recife, enterra, hoje, “mais [pessoas por] covid do que por mortes naturais”, e teme pela própria saúde enquanto realiza os rituais. “Essa doença é muito complicada, porque a família quando perde o ente querido quer se despedir e não pode. Não é como a morte natural. Acabei de enterrar um, acompanhei o cortejo. É muito doloroso. Tinham só umas 10 pessoas”, contou.

Wilson descreve que vem sendo recorrente as famílias que entram em negação durante o sepultamento das vítimas da doença, por não poderem ver o corpo. “Com covid, o caixão chega aqui lacrado. Tem família que diz ‘não, isso não é meu pai. Ele não está aí, eu quero vê-lo’. E a gente passa a orientação de que não teria condições de ver nem se abrisse o visor, porque tem dois sacos e porque o caixão está vedado”, descreveu. Assim, parte do trabalho da equipe de coveiros torna-se consolá-las. “Às vezes, as pessoas chegam aqui aperreadas, a gente vai lá, consolar a família e conversar com ela”.

FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
Coveiros do Parque das Flores e Cemitério de Santo Amaro, contam suas experiências durante a pandemia - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM

A doutoranda em psicologia cognitiva Taciana Breckenfeld explicou que isso acontece porque, do ponto de vista emocional, todo o ritual de sepultamento auxilia no processo de “encerramento de ciclo”; quebrado, agora, pelo perigo da contaminação com o vírus. “O ritual, por mais doloroso que seja, aponta para uma continuidade da vida. O enterro feito dessa forma pode alargar a dor e o sofrimento por não possibilitar a despedida da forma como [o enlutado] queria. Tem sido muito ruim as pessoas não terem tido o tempo de processamento, do velório. Esta é a hora de organizar as emoções relacionadas à partida.”

O próprio Wilson perdeu, há uma semana, o tio para a covid-19. A notícia chegou por meio de uma ligação feita pela mãe, que perguntou se ele iria para o enterro, que tinha capacidade máxima de dez pessoas. Ele preferiu não ir. “Mãe, se for uma pessoa, ela não vai vê-lo; e se forem dez pessoas, elas não vão vê-lo”, relatou ele sobre a resposta que deu à mãe. “Então, Deus foi no meu lugar. A gente que trabalha com isso no dia a dia nunca pensa que vai acontecer com a família da gente”, disse.

Heraldo escolhe suprimir os pensamentos sobre o trabalho sempre que passa pelo portão do cemitério, e, para tornar o dia a dia mais leve, mantém uma boa dinâmica com os colegas de profissão. “Se a gente for botar isso na mente, a gente endoida e entra em depressão. A gente leva a vida aqui brincando um com o outro”, contou. Wilson afirma que a comunicação com a equipe de sepultadores no momento do enterro já acontece pelo olhar. “Evitamos conversar entre si”, enunciou.

O coveiro se diz “acostumado” com o trabalho e revela gostar do que faz, mas que só não sentiria a dor das famílias se fosse de “ferro”. “Não vamos demonstrar para a família, temos que fazer nossa função, é nossa obrigação, mas a gente sente a dor dos outros também. A vontade é fazer logo o serviço, terminar e ir embora. Uma mãe perde um filho, o filho perde uma mãe e isso tudo mexe com a gente. Pensamos na dor que vamos passar também”, relatou.

Nos cemitérios municipais do Recife — Santo Amaro, Parque das Flores, Tejipió, Casa Amarela e Várzea — foram sepultadas 12.335 pessoas em 2019. Em 2020, o número cresceu para 14.948: do total, 4.044 foram vítimas de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), causada pelo coronavírus. Em 2021, já foram enterradas 5.651 nas necrópoles públicas da cidades. Dessas, 1.709 por SRAG. No Cemitério de Santo Amaro, foi erguido um enorme paredão de gavetas que abriga os corpos de quem não resistiu à doença.

Pela proximidade diária com a morte, os coveiros enxergam o último suspiro com mais leveza. “A gente já se dá com ela (a morte) e aproveita mais a vida, porque tem muita gente que quer machucar o outro, mas nós sabemos que todo mundo termina aqui”, discorreu Heraldo. Já Wilson diz normalmente não temê-la, porque “todos estamos em uma fila, não sabemos o dia que vai chegar a nossa vez”, mas, enquanto o novo coronavírus continua a matar, sai de casa “pedindo saúde a Deus para encarar essa pandemia”.

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