ENTREVISTA - MANOELA ALVES

Apontar o Brasil como um país racista é fácil. Difícil é se colocar em lugar de desconforto para combatê-lo, diz advogada

No Brasil, 8 em cada 10 brasileiros consideram o Brasil um país racista, mas a maioria das pessoas não se engaja em um pacto social antirracista. Nesta segunda-feira (20), Dia da Consciência Negra, o tema ganha força e necessidade de reflexão

Imagem do autor
Cadastrado por

Adriana Guarda

Publicado em 19/11/2023 às 17:48
Notícia
X

Manoela Alves tem sua história de vida construída na defesa e promoção da igualdade. Formada em direito, tem especialização em compliance antidiscriminatório. Professora universitária há 15 anos, também é diretora do Instituto Enegrecer, que contribui para engajar empresas e instituições no antirracismo. É referência no Brasil em  pesquisa sobre gênero, raça e tecnologia. No sábado (18), ela participou da 2ª Expo Preta RioMar, em um painel sobre "Letramento racial". Nesta estrevista ao JC, no Dia da Consciência Negra, ela fala sobre racismo, avanço nas políticas públicas, perspectivas futuras sobre o tema no País e a defesa de uma ministra negra no STF. 

JORNAL DO COMMERCIO - Qual a importância do mês da Consciência Negra nas discussões sobre racismo e desigualdade racial no Brasil? Na avaliação da senhora, instituições, sociedade e governos aproveitam bem a data para garantir visibilidade ao tema?

MANOELA ALVES - Debater essa temática é tão importante, que antes a gente tinha um Dia da Consciência Negra e hoje já trabalha com um mês, caminhando para que se entenda que a consciência negra precisa existir em todos os espaços, todos os dias. A importância é que nós possamos fomentar dentro das organizações ações mais inclusivas, conscientizar e sensibilizar para que essa pauta vá sendo transversalizada independente do ramo do negócio. E também para que a gente possa estimular e incentivar a valorização e a ascensão de pessoas negras nesses espaços, como um compromisso mesmo, um compromisso com a pauta racial a partir das instituições. Indiscutivelmente, eu acho que as organizações têm utilizado cada vez mais essa data como start para promover esse debate e e isso tem sido muito positivo e tão grande, que hoje a gente já visualiza uma pauta consolidada, que ainda precisa andar muito, mas que hoje movimenta muitos espaços, muitos debates organizacionais.

JCA desigualdade racial traz com ela dimensões econômicas e sociais. Na economia (desemprego, informalidade, baixa renda). Na área social (pobreza, fome, saneamento). Na educação, na saúde e na política ela também aparece. Qual a raiz dessa desigualdade e como é possível transformá-la?

MANOELA - O nascedouro dessa desigualdade dentro do Brasil é o processo de escravização ao qual as pessoas negras foram submetidas. A gente precisa perceber que são séculos de escravização. Para cada 10 anos de Brasil, nós temos sete de escrevidão e apenas três anos de pessoas livres. É uma distorção muito grande, que merece uma atenção diferenciada, porque a gente não está falando de um racismo pontual, mas de um racismo estrutural, que é traduzido em todas as áreas. Em todos os índices econômicos e sociais, a gente vai ter essa vulnerabilidade social da população negra acentuada. Eu acredito em um pacto antirracista que envolva a sociedade em geral, independente da raça, envolvendo organizações públicas e privadas. Para vencer o racismo estrutural a gente precisa mudar uma cultura e isso envolve mudar mentalidade e comportamento. Isso não seria uma atuação para curto e médio prazo. Aa gente precisa começar hoje, com urgência, para que a longo prazo a gente consiga, de fato, um Brasil sem as desigualdades raciais e sociais que temos hoje.

JC - As mulheres são as maiores vítimas, a um só tempo, de racismo e sexismo. Qual a importância de discutir questões como gênero e racismo de forma conjunta?

MANOELA -  Estamos falando do que se chama de interseccionalidade. Ela hoje está presente nos estudos, mostrando que, quando está presente, ela consegue intensificar a vulnerabilidade do sujeito diante do contexto. Por exemplo, uma mulher vai sofrer machismo. Mas se ela for mulher e negra, ela vai sofrer machismo e racismo. Se ela for mulher, negra e trans, ela vai sofrer machismo, racismo e transfobia. E essa potencialização de vulnerabilidades é importante porque mostra que a criação de políticas públicas, visando erradicar essas opressões, precisa ser um processo alinhado, estruturado, entendendo que essas opressões se cruzam. E quando ela se cruzam, elas trazem um cenário de horror, que precisa ser considerado na hora, inclusive, de selecionar as beneficiárias e os beneficiários de ações públicas e da iniciativa privada para garantir uma maior acolhida e inclusão das populações vulneráveis.

JC - Durante muito tempo se defendeu a falsa ideia de que o Brasil era uma democracia racial, mas ao longo dos anos, essa crença perdeu força. Pesquisa realizada este ano mostrou que 8 em cada 10 brasileiros consideram o Brasil um país racista. Se existe a percepção, o que falta para parar de perpetuar esse comportamento?

MANOELA - Essse índice que é trazido, de que a cada 10 pessoas 8 reconhecem que o Brasil é racista, é inversamente proporcional às pessoas que se consideram racistas. Eu acho que é isso o que falta. As pessoas reconhecem o Brasil como um país racista, mas elas não estão dispostas a fazer parte do pacto social necessário para combater essas desigualdades. Apontar que o país tem racismo é algo fácil. Se ver como parte do problema e, a partir daí, entender a responsabilidade para que nós enquanto sociedade vençamos essa mazela social exige das pessoas uma colocação em um lugar de desconforto. E isso é algo que as pessoas não estão prontas para assumir. É nessa perspectiva que a gente não consegue andar, porque um processo de transformação social, ele pede uma atuação efetiva das pessoas. Como dizia Angela Davis, não basta não ser racista é preciso ser antirracista. É preciso promover ações efetivas no sentido de provocar o sistema para que ele faça o caminho inverso e que possa, a partir de um processo pensado, direcionado, estruturado e calculado, que as pessoas físicas, jurídicas, públicas, privadas e todas as instituições assumam esse pacto coletivo de combate ao racismo.

JC - Como estimular um comportamento antirracista e combater o chamado 'racismo recreativo'?

MANOELA - Precisamos ter um comportamento antirracista e sermos mais incisivos com o racismo recreativo. Conseguimos fazer isso quando a gente entende a seriedade do assunto. Racismo mata. A gente precisa, de fato, conscientizar as pessoas de que racismo não pode ser uma recreação, uma brincadeira. Algo só é brincadeira, quando as duas pessoas estão brincando. Numa situação de racismo não se tem duas pessoas brincando. Tem uma pessoa sofrendo uma opressão e, muitas vezes, ela não consegue nem dizer, nem falar sobre a sua dificuldade. A gente começa a ter comportamento antirracista quando tem senso crítico para tudo o que faz. Precisamos observar se estamos lendo pessoas negras, pessoas com deficiência. Que músicas escutamos e que filmes assistimos. De quem a gente consome, se incentivamos o pequeno empreendedor negro e negra.  

JC - Que avanços a senhora percebe nas discussões e políticas públicas para reduzir a desigualdade racial no País?

MANOELA -Sobre políticas públicas, a gente tem trilhado um bom caminho, de resultados importantes. A gente teve uma lei de cotas, com vigência por 10 anos, e agora (na semana que passou) tivemos a edição da nova lei de cotas, com avanços em vários pontos, incluindo o povo quilombola. Também diminuiu o valor da renda per capita para ser beneficiário. Além disso, priorizou para os cotistas a possibilidade de garantia assistência para ajudar a pessoa cotista a se manter no curso. Está visando estender esse benefício para graus mais altos  de ensino, como pós-graduação. A nova lei de cotas foi um avanço histórico, mas nós podemos falar também das mudanças nos concursos, que estão ajudando a mudar a cara do serviço público, porque representatividade importa. Também teve uma mudança essencial, que foi a alteração da injúria racial para tirar ali do Código Penal e para ser incluída dentro dos crimes tripificados como racismo, suportando todos os ônus desses crimes. Uma decisão do STF que criminalizou a homofobia, a lgbtfobia e a lei de racismo serviram de parâmetro também para combater outras opressões. A criação de um Ministério da Igualdade Racial, em âmbito Federal, e hoje a gente tem em âmbito estadual e municipal gerências, secretarias, coordenadorias e outros órgãos, que estão pensando a igualdade racial. Ainda que com dificuldades e pouco orçamento, mas que têm feito a diferença em projetos, que têm viabilizado apoio e financiamento a demandas que valorizam a cultura, a história da população negra. Eu acho que a gente está caminhando para que essas políticas se intensifiquem cada vez mais, numa perspectiva de perceber que o Brasil hoje trilha um caminho totalmente progressista. Eu acho que a cereja do bolo hoje seria a nomeação de uma mulher negra para o STF. Essa indicação é urgente, necessária e simbólica, porque quando a gente coloca uma mulher negra nessa Suprema Corte nós estamos dando uma mensagem muito grande para o sistema de Justiça, que ele está pronto para refletir a pluralidade da população brasileira. E aí, sim, a gente vai estar falando de um compromisso real e efetivo por parte do poder público com a pauta de raça, que foi uma das pautas inclusive essenciais para o governo progressista que hoje está em curso. 

Tags

Autor