Consciência racial avança, mas desigualdades persistem no Brasil, que tem 55% da sua população negra
Dia da Consciência Negra é feriado nacional no Brasil pela primeira vez. É momento de refletir sobre uma sociedade mais justa e o Brasil que queremos
Na terceira semana da série que o Jornal do Commercio está produzindo sobre "Diversidade e Inclusão", a reportagem desta quarta-feira (20) é sobre Igualdade Racial, em celebração ao Dia Nacional da Consciência Negra. Pela primeira vez, a data é feriado nacional e uma oportunidade de refletir sobre uma sociedade mais justa e o Brasil que queremos. Na próxima quarta-feira (27), a última reportagem da séria trata sobre etarismo.
O Brasil é um país negro e racista. No Censo 2022 do IBGE, 55,5% da população se autodeclarou preta e parda. Mesmo sendo maioria, a desigualdade racial histórica persiste. Passados 136 anos da abolição, a pobreza tem cor, o desemprego tem cor, a violência tem cor, o analfabetismo tem cor, a moradia precária tem cor, a falta de saneamento tem cor.
Ao longo da história, o preconceito reforçou as desigualdades, criando um abismo entre negros e brancos. Defender a igualdade racial é remover barreiras enfrentadas pela população negra e contribuir para o desenvolvimento econômico e social do País. É impossível uma Nação avançar, deixando para trás mais da metade do seu povo.
“Não queremos ser iguais apenas na letra fria da lei, mas porque somos seres humanos. Queremos acessar os espaços e gozar dos mesmos direitos de qualquer cidadão”, diz Tiago Kfuso, que representa o Movimento Negro Unificado em Pernambuco (MNU-PE) e o Sistema ONU.
VIDA NA EXTREMA POBREZA
No retrato do Brasil racista, a população negra saiu livre da escravidão para enfrentar outros aprisionamentos. Como disse a escritora e negra, Carolina Maria de Jesus, em 1958, no seu livro “Quarto de Despejo”: ‘ a escravatura atual é a fome’. Não ter o que comer é o ápice da pobreza e da extrema pobreza.
No Brasil, em 2023, a taxa de pessoas negras vivendo em extrema pobreza (9%) é quase o dobro da taxa entre brancos (5%), segundo o IBGE. A definição de extrema pobreza é ter uma renda média mensal por residência per capita menor ou igual a R$109,00.
Quando se observa a taxa de desemprego em 2023, também há uma diferença significativa definida pela cor da pele. Enquanto entre pretos (8,9%) e pardos (8,5%) a taxa supera a média nacional (7,4%), a população branca apresentou taxa de 5,9%.
COTA NÃO É FAVOR
Mesmo diante de tantos desafios, há duas décadas as desigualdades raciais começaram a ser minimizadas e a se pensar em um novo modelo de sociedade. As ações afirmativas são um caminho para garantir o acesso das pessoas negras aos ambientes e promover a diversidade. Um dos caso mais eficientes foi a Lei das Cotas, de 2012, que estabelece 50% das vagas em universidades públicas para negros, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência que concluíram o ensino médio em escola pública.
Após 12 anos de sua criação e de ter promovido uma verdadeira revolução no acesso dos negros ao ensino superior, a política pública continua sendo criticada, sob o desgastado argumento de que ‘tira vagas dos brancos’ e ‘desrespeita a meritocracia’.
Levantamento do Consórcio de Acompanhamento de Ações Afirmativas formado por pesquisadores de diferentes universidades, indica que em 2012 estudantes pretos, pardos e indígenas (PPI) correspondiam a 43,7% dos universitários de 18 a 24 anos. Em 2021, essa fatia saltou para 52,4%.
"COTISTA" E "POBRE"
No sábado (16), alunos da PUC-SP protagonizaram um episódio de racismo contra alunos da USP. Durante uma partida de handebol nos Jogos Jurídicos estaduais, estudantes da torcida do curso de direito da PUC-SP foram filmados gritando termos como "cotista" e "pobre" para ofender os adversários. O caso aconteceu em Americana, no interior paulista.
“O episódio é doloroso e merece ser repudiado, mas isso acontece porque mesmo sendo lei o racismo é tratado como falta de educação, mas não é. É a naturalização da desumanização do outro. A educação é o melhor caminho para resolver isso. Aprender na escola a se conhecer e a se questionar, a conviver em um ambiente preparado para ser antirracista. Porque, no fundo, as pessoas não querem se odiar”, acredita Tiago Kfuso.
ESSE LUGAR É PRA MIM
Jéssica Silva só conhecia a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) pela janela do ônibus, quando algum coletivo fazia a rota por ali. Em 2019, quando cursava o 3º ano do ensino médio no Erem Álvaro Lins, em Nova Descoberta, no Recife, uma amiga indicou um curso pré-vestibular na UFPE.
A oportunidade foi uma reviravolta na vida da estudante negra Jéssica, hoje com 22 anos. Até aquela época ela pensava em cursar Farmácia, mas conheceu um professor de Filosofia e mudou de ideia. Escolheu Filosofia e passou de primeira no Enem no sistema de cotas.
“A Lei de Cotas é muito importante porque é difícil competir com quem teve uma educação de qualidade desde os anos iniciais até o ensino médio. Na escola pública a população negra se depara com uma série de lapsos de conteúdo, sem falar no baixo salário dos professores, nas greves e, muitas vezes, na falta de conhecimento das famílias para ajudar em casa”, destaca.
NOSSA FILHA, UNIVERSITÁRIA
Filha da empregada doméstica aposentada, Inês Maria da Silva, e do pedreiro, Nivaldo de Lima da Silva, Jéssica é a primeira da família a cursar o ensino superior. Nem o pai nem a mãe conseguiram concluir o ensino fundamental. “Quando foram comigo fazer a matrícula, meus pais ficaram embasbacados com o campus. Eles sentem muito orgulho, porque ingressar na universidade parecia algo muito distante da nossa realidade”, diz.
Depois de ingressar na universidade pelo sistema de cotas, outro desafio é se manter no curso. “No começo eu só consegui uma bolsa de cerca de R$300 e precisava trazer marmita. Hoje tenho duas bolsas e consigo até ajudar nas contas da casa e na alimentação”, conta.
Jéssica sente racismo na universidade e fora dela, mas tenta reverter o preconceito com letramento. Ela participa de um grupo de estudantes dos cursos de Filosofia e Sociologia, que fazem rodas de conversas nas praças da Várzea e do Ibura para ensinar as pessoas sobre igualdade, diversidade, inclusão e amor ao outro.