VOTO E FÉ

Como a influência pela fé fez com que os evangélicos fossem campeões de voto na política

Diferente do que muitos pensam, a influência dos protestantes na política não nasceu em 2018 e vem de muito antes

Marcelo Aprígio
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Marcelo Aprígio
Publicado em 13/09/2020 às 9:00 | Atualizado em 16/09/2020 às 19:51
MARCELO APRÍGIO/JC
EVANGÉLICOS Pelo menos 60 pastores se reuniram na quinta-feira (10) em uma igreja em Boa Viagem para discutir a "omissão da igreja evangélica na política" - FOTO: MARCELO APRÍGIO/JC

Após um farto café da manhã no hall de entrada do templo, no qual pelo menos 60 pastores e líderes evangélicos, aglomerados, se confraternizavam e discutiam a criação de cursos para ensinar os fiéis sobre os ex-premiers britânicos Margaret Thatcher e Winston Churchill, o grupo se dirigiu ao auditório da Igreja Apascentar, em Boa Viagem, Zona Sul do Recife, para dar início ao primeiro encontro do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política (Fenasp) em Pernambuco.

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No salão, nada, além do som dos condicionadores de ar, era ouvido. Até que o ex-candidato ao Senado pela REDE, o cantor e pastor Jairinho, hoje no PTC, rompe o silêncio típico de momentos pós-alimentação. Vestido com um paletó e camisa azuis, o religioso subiu ao palco e, enquanto tocava um teclado, saudou os presentes. “Graça e paz, irmãos”, disse o pastor, que luta na Justiça para tentar forçar seu partido a lhe lançar candidato à Prefeitura do Recife. “Hoje será um dia histórico para nosso Estado”, completa Jairinho, que fora respondido por um público majoritariamente masculino com volumosos “amém” e “aleluia”.

O perfil da plateia é completamente diferente dos dados de uma pesquisa do Instituto Datafolha, de janeiro de 2020, que apontam que a religião evangélica hoje tem um rosto feminino, negro, que ganha até dois salários mínimos por mês e tem apenas o ensino médio completo.

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Pastores oram por grupo de pré-candidatos a vereador em várias cidades do Grande Recife - MARCELO APRÍGIO/JC

Após a participação do cantor, o presidente do Fenasp em Pernambuco, pastor Marcelo Ramos, tomou a palavra para explicar a finalidade da organização que comanda. "[O Fenasp] tem o objetivo de ser um guardião e um atalaia dos nossos princípios. Somos um fórum de direita que é baseado nos valores judaico-cristãos", declarou ele, seguido de efusivos aplausos dos presentes.

Neste clima, Ramos anunciou os nomes de dois oradores para “ministrar sobre a necessidade da Igreja ser ativa politicamente”. Foram os pastores Divino Teodoro e Pedro Rodrigues, idealizadores do Fenasp. Em seus discursos, os líderes religiosos fizeram críticas aos partidos de esquerda e ao “ativismo judicial” do Supremo Tribunal Federal. “A esquerda, nos últimos anos, perdeu espaço e agora tenta usurpar o poder por meio de um Judiciário que está movido à ideologia com seu ativismo judicial, não pelas leis”, afirmou o pastor Divino, indicando a leitura de livros do escritor Olavo de Carvalho.

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Houve também um chamado à inserção dos líderes evangélicos e conservadores em instituições de ensino, a fim de repassar valores do grupo a estudantes. “Perdemos a nossa penetração nas escolas e universidades, infelizmente. Precisamos resgatar isso, porque nossa juventude tem sido bombardeada por ideologias tiranas, como o comunismo e o socialismo. É preciso dar um basta na ideologização da nossa educação”, defendeu fervorosamente o pastor Pedro Rodrigues, sob aplausos e gritos de “amém”.

Além disso, os oradores foram enfáticos ao criticar parte da bancada evangélica, que, segundo eles, “está envolvida com o que há de pior”. “Precisamos qualificar nossa representação, tirar de lá os falsos crentes que, durante todos esses anos, deram sustentação a governos socialistas e de esquerda”, declara Pedro Rodrigues.

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Pré-candidatos são “abençoados por uma oração” em evento que reuniu líderes evangélicos - MARCELO APRÍGIO/JC

Ao fim dos discursos, os pastores convidaram à frente pré-candidatos presentes no evento para serem “abençoados por uma oração”. “Deus, te entregamos agora cada um desses homens e mulheres de coração conservador, maduro, prudente e com olhar para o necessitado. Oxalá que todos eles entrassem, Senhor. Quero profetizar, pai: da mesma forma que os tesouros foram abertos para financiar o mal, que eles se abram para patrocinar essas campanhas”, orava o pastor Thiago Montimór, líder da Igreja Apascentar. “Aleluia! Amém!”, respondiam incessantemente os fiéis com as mãos erguidas em direção aos pré-candidatos,

Nenhuma palavra, porém, fora dita sobre a aprovação, pelo Congresso Nacional, de uma emenda que concede perdão a dívidas previdenciárias e tributárias de igrejas e templos religiosos. Juntas, as dívidas podem somar R$ 1 bilhão. A medida foi proposta pelo deputado David Soares (DEM-SP), filho do missionário R. R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, que tem milhões em dívidas com a União.

Questionado pelo JC ao final do evento na quinta-feira (10), o presidente do Fenasp afirmou que a aprovação apenas cumpre o que prevê a Constituição Federal. “Entendo que isso é o estabelecimento do que já existia. Acredito ainda que essa demanda ela precisa ter uma lapidação maior”, disse o pastor Marcelo Ramos, argumentando que igrejas que têm templos alugados não tem isenção de impostos porque o prédio não lhe pertence.

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Marcelo Ramos é pastor e presidente do Fenasp. A organização, segundo ele, é uma atalaia para defender valores judaico-cristãos - MARCELO APRÍGIO/JC

Apesar de aprovada pelos congressistas, a medida pode não vigorar. Isso porque o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tinha que sancionar o texto até esta sexta-feira (11). Antes do prazo acabar, o chefe do Executivo havia indicado a membros da bancada evangélica que vetaria um dos dispositivos que anistiam os templos do pagamento de dívidas com a Receita Federal. Liberando perdão apenas para outra parte dos débitos.

Bolsonaro explicou aos parlamentares que até concordava com o perdão e tinha vontade de sancionar porque vê nas igrejas um importante papel social. Mas o presidente ponderou que não tinha amparo jurídico e corria risco de cometer crime de responsabilidade, passível de impeachment, caso sancionasse a proposta aprovada pelo Congresso do jeito que estava.

Para a cientista política e professora da Faculdade Ciências Humanas de Olinda (Facho), Priscila Lapa, o fato de Bolsonaro ter se explicado à chamada “Bancada da Bíblia” sobre sua decisão mostra o quão fortalecido está este grupo. “Os movimentos religiosos sempre influenciaram na política brasileira. E isso vem sendo mais demarcado, nos últimos anos, com os evangélicos, principalmente as lideranças, assumindo um certo protagonismo”, pontuou a especialista.

DESDE A CONSTITUINTE

Foto: Arquivo Agência Brasil
Os evangélicos, que consideravam a política uma "coisa do diabo", passaram a lançar candidatos nas eleições de 1986 que visava à Constituinte - Foto: Arquivo Agência Brasil

Diferente do que muitos pensam, a influência dos protestantes na política não nasceu em 2018. Desde a transição do regime militar para a democracia, em meados dos anos 1980, os evangélicos passaram a crescer vertiginosamente, disputando espaço com o catolicismo e com as religiões afrobrasileiras. Isso também se refletiu na influência deste segmento na política. É o que explica o pesquisador do Observatório de Estudos de Cultura e Religiosidade (OCRE) Cleonardo Mauricio.

“Esse crescimento vem desde os anos 1960, mas explode nos anos 1980 e 1990, e segue crescendo. Atualmente, cerca de 25% dos brasileiros se declaram evangélicos. Logo, é normal que a representatividade evangélica cresça à medida que o número de evangélicos aumente”, explica ele.

Segundo o pastor Ariovaldo Ramos, coordenador nacional da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, formada em 2016, as igrejas Evangélicas tendiam a se manter distantes da lógica partidária. “Nunca passou pela lógica evangélica assumir o poder, influenciar na política. Até porque a fé protestante é a que mais atuou na construção do Estado laico, justamente porque é um cristianismo tardio, que vai ser perseguido, na Cortina de Ferro e, depois, no mundo islâmico”, afirma. “A lógica, entretanto, passou a entender que era preciso estar no poder para garantir o avanço da fé, principalmente por causa das perseguições”, completa.

De acordo com Cleonardo Maurício Júnior, os evangélicos, que consideravam a política uma "coisa do diabo", passaram a lançar candidatos nas eleições de 1986 que visava à Constituinte. “De lá para cá, o lema mudou. A política deixou de ser demonizada e passou a ser ‘irmão vota em irmão’”, conta o pesquisador, afirmando que os crentes tomaram gosto pela coisa e entenderam o tamanho que representam na nação.

ROBERTO SOARES/ALEPE
Na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), 9 dos 49 deputados estaduais se dizem evangélicos. O número representa cerca de 18% do número de parlamentares da casa - ROBERTO SOARES/ALEPE

Hoje, a bancada evangélica reúne oito diferentes igrejas: Assembleia de Deus, Universal do Reino de Deus, Igreja Presbiteriana, Igreja Batista, Igreja Episcopal, Igreja Metodista, Igreja Internacional da Graça de Deus e Igreja Luterana. Ela tem 92 deputados assumidamente evangélicos (dos 513), nove senadores (dos 81) e ideologias distintas. Os signatários da Frente Parlamentar são 195, mas há por exemplo católicos entre eles. E há congressistas evangélicos que não compõem a bancada ou a frente. Em Pernambuco, a Assembleia Legislativa conta com oito parlamentares protestantes entre os 49 integrantes da Casa. O número é menor que o encontrado na Câmara Municipal do Recife, onde nove de 39 vereadores afirmam ser evangélicos.

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Para o mestre em ciências das religiões, Álvaro Marques, o tamanho do grupo pode aumentar, dada a influência de pastores sobre fiéis, em decorrência, principalmente, do trabalho social realizado por esses líderes por meio das igrejas. “Na periferia, por exemplo, é a igreja que acolhe uma mãe que perdeu um filho assassinado pelo tráfico. Para a comunidade onde está uma igreja, é muito melhor que um jovem seja crente do que envolvido com drogas. São essas coisas, que são coordenadas por um pastor ou dirigente de igreja, que fazem os fiéis reconhecerem no líder religioso uma autoridade para indicar candidatos”, explica.

GRUPO DIVERSO

O especialista reforça ainda que, apesar disso, o segmento evangélico não é “uma manada” e que há adeptos da religião que não seguem os conselhos eleitorais de um pastor ou líder religioso. Percebendo isso, diversos evangélicos de esquerda se uniram para impulsionar candidaturas progressistas e oferecer uma alternativa àqueles que partilham da mesma fé mas discordam das bandeiras conservadoras da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional.

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Coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, pastor Ariovaldo Ramos (no canto de direito) defende que evangélicos não formam grupo homogêneo - Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil

Lançada no início de julho deste ano, a Bancada Evangélica Popular afirma defender políticas públicas contra a desigualdade social e pela paz. A religião, porém, deve ficar de fora dos mandatos, uma vez que o movimento defende o Estado laico, dizem os integrantes. “Não tem nada a ver com essa ênfase da bancada evangélica de representar a igreja, mas sim de marcar posição, para que todo o Brasil saiba que a igreja evangélica não é esse grupo hegemônico”, conta o pastor Ariovaldo Ramos.

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FENASP Pastores se reuniram quinta em Boa Viagem para discutir política - FOTO:MARCELO APRÍGIO/JC
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EVANGÉLICOS Pelo menos 60 pastores se reuniram na quinta-feira (10) em uma igreja em Boa Viagem para discutir a "omissão da igreja evangélica na política" - FOTO:MARCELO APRÍGIO/JC
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EVANGÉLICOS Pelo menos 60 pastores se reuniram na quinta-feira (10) em uma igreja em Boa Viagem para discutir a "omissão da igreja evangélica na política" - FOTO:MARCELO APRÍGIO/JC
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REPRESENTATIVIDADE Comunidade passou a atuar de forma mais organizada - FOTO:MARCELO APRÍGIO/JC
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EVANGÉLICOS Pelo menos 60 pastores se reuniram na quinta-feira (10) em uma igreja em Boa Viagem para discutir a "omissão da igreja evangélica na política" - FOTO:MARCELO APRÍGIO/JC
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Jair Bolsonaro - FOTO:CAROLINA ANTUNES/PR/DIVULGAÇÃÕ
ROBERTO SOARES/ALEPE
Alepe - FOTO:ROBERTO SOARES/ALEPE

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