Nesta sexta reportagem da série Desafios Urbanos, gestores e especialistas em saúde pública são unânimes ao afirmar que a qualificação da atenção básica é um trabalho desafiador para os futuros prefeitos não apenas da Região Metropolitana, mas de todo o Estado. Devido à pandemia de covid-19, as demandas da saúde tendem a se agravar nos próximos meses, especialmente com o fim do orçamento emergencial para enfrentar as consequências do novo coronavírus. Reduzir as filas de espera, garantir consultas sem demora e oferecer estrutura nos postos de saúde também são desafios para novos gestores, que precisarão enfrentar os problemas com o enxuto orçamento municipal.
Faz três meses que o servidor público aposentado Manoel Jorge da Silva, 68 anos, luta para marcar uma consulta com urologista para ele e outras com ginecologista e angiologista para a esposa. Na última quinta-feira (15), ele foi à Policlínica Amaury Coutinho, no bairro de Campina do Barreto, Zona Norte do Recife, em mais uma tentativa. "É muito difícil e, quando conseguimos marcar, ainda há a espera para o dia de sermos atendidos. Os próximos prefeitos têm que melhorar isso. Do jeito que está, é um caos", contou Manoel, ciente de que a Saúde será, mais do que em anos anteriores, um dos principais desafios para os agentes políticos que administrarão os municípios nos próximos quatro anos. Mergulhado na pandemia de covid-19 (a maior crise sanitária dos últimos 100 anos), os sistemas de saúde municipais tiveram a resiliência testada e ganham agora os holofotes na agenda eleitoral.
Os problemas, que se tornaram mais visíveis durante a epidemia (como o investimento insuficiente em saúde gratuita para todos, o que implica acesso a atendimento de qualidade disponível para alguns, com base no poder aquisitivo, e não na necessidade médica), já eram um gargalo na maior parte dos municípios pernambucanos. E esses obstáculos devem aumentar no ano que vem. Para imaginar por que as dificuldades serão maiores, basta considerar que, por causa da pandemia do novo coronavírus, muitos municípios tiveram que suspender os atendimentos de diversas especialidades, como a cardiologia. Alguns já retomaram, mas em ritmo lento mais lento que antes. Nesse contexto, há um represamento na assistência de boa parte da população de, pelo menos, sete meses. Essa demanda reprimida, durante o período de isolamento social, certamente agravará a situação das unidades de saúde na fase pós-covid.
"Atualmente a regulação (acesso a vagas disponíveis para consultas e procedimentos) é um dos principais problemas a ser enfrentados pelos municípios. Os exames são agendados para daqui a um ano, e isso traz uma dificuldade dupla porque, passado esse tempo, a pessoa pode não mais precisar do procedimento ou apresentar uma piora no quadro de saúde", ressalta a médica sanitarista Paulette Cavalcanti de Albuquerque, professora da Universidade de Pernambuco (UPE) e pesquisadora da Fiocruz Pernambuco.
Dedicada a analisar os cenários da atenção primária (atende cerca de 80% das necessidades de saúde de um indivíduo), as políticas de saúde e a educação popular, Paulette acredita no potencial da participação de cidadãos para resultar em melhorias na qualidade do sistema. Dessa maneira, a voz da população é valiosa para fazer frente às desigualdades nos resultados de saúde. "Precisamos de um exército de educadores. Para fazer esse trabalho, podemos recorrer a estratégias lúdicas de conscientização", diz a sanitarista, que não deixa dúvidas sobre a valia do modelo de cuidado com base nos modos de vida das comunidades. "É preciso que a população possa participar dos rumos que serão traçados pelos próximos prefeitos. Muitas vezes é pela falta de engajamento em ações que as pessoas não compreendem por que se deve usar máscara e fazer isolamento social, por exemplo. Os novos gestores também têm que investir numa ação emergencial, porque o desemprego veio junto à covid-19. É necessário que eles estejam sensíveis a essa questão."
A declaração de Paulette é reiterada pelo fato de a segunda área mais impactada pela pandemia, no âmbito dos municípios, ter sido a geração de empregos, atrás da educação. Esse é um resultado de pesquisa divulgada pelo Ibope no início deste mês. O levantamento foi feito com prefeitos, secretários e gestores de 302 municípios. Sete em cada dez prefeituras avaliaram como muito alto ou alto os efeitos da atual crise sanitária nas contas públicas: 69% dos municípios brasileiros tiveram o orçamento severamente afetado este ano.
Dessa maneira, o cenário da saúde das prefeituras tende a se tornar pior se considerarmos o investimento federal insuficiente no setor. Diante da expectativa de queda do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil de aproximadamente 6% este ano, os repasses aos municípios impreterivelmente desabarão e, ao mesmo tempo, as despesas obrigatórias vão aumentar. Equilibrar as contas públicas nos próximos meses será uma missão para os gestores que assumirem as prefeituras em janeiro do próximo ano, principalmente nas cidades pequenas.
"Os próximos prefeitos precisarão dar a garantia para além dos 15% (lei determina que os municípios reservem, no mínimo, esse percentual para o setor)", considera a sanitarista Ana Cláudia Callou, secretária-executiva da Mulher de Pernambuco, que esteve na gestão da Secretaria de Saúde do Estado até 2018. Para ela, é nítido o subfinanciamento do gasto público em saúde, e essa gestão financeira será um desafio significativo aos próximos prefeitos. "Com poucos recursos, precisamos fazer escolhas. Dessa maneira, a atenção primária, responsável pela prevenção (compreende vacinação e atendimento no pré-natal, por exemplo), é a esfera que mais tem sofrido. No orçamento federal da saúde, cerca de 70% são direcionados à alta complexidade, que inclui à assistência hospitalar, de alto custo", diz.
Os recursos em 2021 são, inclusive, mote de petição pública do Conselho Nacional de Saúde (CNS) com o objetivo de sensibilizar o Congresso Nacional para garantir a continuidade do orçamento emergencial para a saúde no próximo ano. Com o fim do estado de calamidade pública, em 31 de dezembro, o orçamento emergencial para a pandemia não existirá mais. O País voltará a ser sufocado pela Emenda Constitucional 95/2016, que congelou investimentos até 2036. Na prática, o Sistema Único de Saúde (SUS) perderá R$ 35 bilhões, em comparação com recursos federais este ano.
Assistência mais complexa no básico
Aumentar a complexidade da assistência oferecida na atenção primária também desponta entre os principais desafios para os gestores das cidades a partir do próximo ano. Com essa expansão, é possível evitar que o paciente se desloque a um hospital para, por exemplo, fazer procedimentos como suturas e realizar eletrocardiograma, que podem ser oferecidos em uma unidade básica de saúde com incremento de oferta para atender a demanda. “Para tornar esse tipo de assistência mais resolutiva, é preciso contar com condições estruturais, como se vê hoje no modelo de expansão qualificada das Upinhas (unidades municipais voltadas para atendimento de pequenas urgências, como tonturas, ferimentos superficiais e dores no corpo)”, diz o secretário de Saúde do Recife, Jailson Correia. Ele destaca que os próximos prefeitos receberão um sistema de atenção básica mais informatizado, que possibilita aos agentes comunitários de saúde usarem tablets para acompanhar a população e dar mais resolutividade às demandas.
Na comunidade do Pilar, no Bairro do Recife, a Upinha Nossa Senhora do Pilar é uma das mais novas da atual gestão, com foco na garantia de ampliação dos serviços e novos espaços para quem mora na região, com equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) e do Consultório na Rua, que leva atendimentos de saúde à população em situação de rua. “Circulamos pela comunidade e fazemos visitas às casas das pessoas acamadas ou com dificuldade de locomoção”, conta o agente comunitário de saúde Márcio Pinheiro, que trabalha na área há sete anos.
Na quinta-feira (15), ele passou pela residência do casal José Severino Silva, 72 anos, e Laura Mendes, 68 anos. Ele tem diabetes, e a esposa, hipertensão arterial. “Nosso desejo é que o próximo prefeito lembre que o posto não pode ficar sem médico. Quando um está afastado ou de férias, precisa ser substituído. O doutor é o pai de todo mundo aqui na comunidade”, disse José Severino.
Saúde mental
O agravamento de quadros psiquiátricos em decorrência da pandemia de covid-19 tem sido observado por especialistas de vários segmentos. Depressão, ansiedade e transtorno de pânico, bem como alterações significativas no sono, são condições relatadas por boa parte da população. Lidar com esse cenário é mais um dos desafios dos próximos políticos que administração os municípios. “Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) não têm recebido investimentos adequados e passam por problemas de infraestrutura. Atualmente, se uma pessoa precisa de um psiquiatra e vai ao CAPS, dificilmente consegue assistência. E a oferta de psicólogo é mais difícil ainda. Isso traz uma repercussão grande”, ressalta a médica sanitarista Paulette Cavalcanti de Albuquerque.
Para ela, os novos prefeitos precisam compreender que a doença mental é uma das que mais aposentam pessoas jovens, em idade produtiva. “Por isso, é necessária atenção. O município tem que oferecer atendimento adequado para essas situações”, acrescenta.
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