Eleições 2022 - Desafios

Na casa de Maria das Dores refeição é uma vez por dia. Não bastasse a fome, recolheram o burro "ajudante" da família

Moradora de São Caetano, no Agreste de Pernambuco, Maria das Dores e o marido Jeferson têm seis filhos e ela está grávida de cinco meses do sétimo. Fome no Agreste é mais severa do que em outras regiões do Estado

Imagem do autor
Cadastrado por

Adriana Guarda

Publicado em 20/08/2022 às 19:19 | Atualizado em 22/08/2022 às 19:54
Notícia
X

A viagem de Santa Cruz do Capibaribe até São Caetano, no Agreste de Pernambuco, durou uma semana, numa carroça puxada por um burro. Maria das Dores foi em cima, com as três filhas, enquanto o marido, Jeferson, acompanhou o percurso de quase 80 km a pé.

A dormida foi organizada pela beira da estrada mesmo, perto de postos de combustíveis e abrigados pelas árvores. Para garantir as refeições, usaram o pouco dinheiro que levaram e receberam ajuda das pessoas dos lugares por onde passaram.

O casal decidiu deixar Santa Cruz para fugir da fome. Sem trabalho certo, a cidade ficou cara para eles. Não conseguiam mais pagar o aluguel de R$ 350,00 e o dono pediu o imóvel.

JC Imagem
Maria das Dores vive situação de insegurança alimentar em São Caetano, no Agreste - JC Imagem

Quando chegaram em São Caetano pagaram um mês de aluguel, enquanto Jeferson erguia o teto onde a família ia morar. Fez o possível: uma casa com um vão só, sem chuveiro, sem banheiro e com uma estrutura mínima. Isso já faz 5 anos e até hoje continuam fazendo as necessidades no mato, porque a residência continua sem banheiro.

Comida e roupa do lixão

"Com a ajuda do burrinho, a gente catava material no lixão e vendia. Dali a gente tirava várias coisas: o material reciclável para vender, alguma comida que ainda se aproveitava e até roupas. Muita gente fala porque as pessoas tiram comida do lixão, mas é melhor do que deixar os filhos passar necessidade. Eu lavava as roupas direitinho e eles usavam. Também achava pão e outras coisas que dava para comer", defende Maria das Dores da Conceição Gomes, de 27 anos.

Ela conta que em 2020 veio a pandemia e fecharam o lixão, por causa do descarte de lixo hospitalar no local. Maria das Dores diz que os recicláveis retirados do lixão eram rapidamente vendidos e o dinheiro servia para alimentar a família.

Reencontro com a fome

Sem a renda do lixão, o casal se reencontrou com a fome em São Caetano. Vivem hoje dos R$ 600 do Auxílio Brasil e dos bicos que Jeferson faz. É pouco para alimentar os seis filhos e Maria das Dores, que está grávida de 5 meses da sétima filha: Maria Guadalupe. Ela conta que vem tentando fazer laqueadura pelo serviço público de saúde, mas quando foi ter a filha mais nova, os médicos insistiram no parto normal. Ela também está esperando ser chamada pela saúde para colocar o DIU.

"Muitas vezes minhas filhas vão para a escola de manhã sem comer nada. Tem dias que só tem cuscuz e eu fico regrando para comer perto do final do dia e não dormir todo mundo com fome. Quando não tem leite para minha filha (de 1 ano), engano a fome dela passeando pelo lado de fora da casa e mostrando as coisas", revela.

JC Imagem
Maria das Dores vive situação de insegurança alimentar em São Caetano, no Agreste - JC Imagem

A catadora afirma nem se lembrar da última vez que comeu carne. "Quando tem mistura é salame, ovo e salsicha. E o ovo é porque criamos umas galinhas", observa.

Um dia a diretora da escola das suas filhas chamou Maria das Dores para perguntar se era verdade que elas iam para a escola sem comer.

"Fiquei com muita vergonha, mas disse que sim, que estávamos passando dificuldade. Depois, uma professora disse que ia dar uma boneca de presente a minha filha, mas ela falou que preferia comida", lembra.

PRF recolheu o burrinho e a família ficou sem transporte

Maria das Dores conta que a vida ficou ainda mais difícil nos últimos meses porque deixaram de contar com o burrinho Rodrigo. Ele estava com a família fazia anos e foi comprado por R$ 250 na feira de Santa Cruz do Capibaribe.

"Deixamos ele aqui, mas o animal se soltou e foi andar da estrada (na BR). Ficamos sabendo por um vizinho que a PRF (Polícia Rodoviária Federal) recolheu o bicho e levou para Caruaru. Fui até lá soltar, mas tinha que pagar R$ 350. Disseram que se não retirasse em um mês iam doar ou vender", lamenta a catadora.

Morando longe da cidade, o burrinho servia como meio de transporte para levar as crianças à escola, ir ao comércio e até ao médico. "Com o burro, nós chegávamos na escola em 15 minutos, mas agora preciso caminhar 40 minutos", compara. Grávida, Maria das Dores conta que mal chega em casa do percurso a pé e já tem que voltar para buscar as meninas novamente.

Sem o jumento Rodrigo, o casal também perde sua ferramenta de trabalho para catar material reciclável, enquanto as crianças perdem a convivência afetiva e as brincadeiras com o animal.

A PRF esclarece que os animais andando na pista são recolhidos para evitar colisões graves na rodovia. Procurada pelo JC, a Polícia foi sensível ao problema de Maria das Dores e se prontifcou a tentar viabilizar a doação de outro burro para ela, além de coletar alimentos para doar. 

Thiago Lucas/Arte JC
Agreste é a região mais pobre de Pernambuco - Thiago Lucas/Arte JC

Quando fala em sonhos, Maria das Dores deseja ter refeições três vezes ao dia para ofecerer aos filhos, além de reformar a casa. Se de um lado ela chora quando as crianças pedem comida e não tem o que dar, os filhos também choram o sofrimento diário da mãe. Ela vive no Agreste, região onde 6 em cada 10 pessoas vivem na pobreza. Em 2021, o Agreste bateu recorde de empobrecimento da população, com a maior taxa desde 2012.


 

Tags

Autor