MEMÓRIA

Com o jornal 'Papa-Figo', Manoel Bione satirizou a política pernambucana na redemocratização

Falecido no sábado (16), jornalista e cartunista marcou época com publicação independente que incorporou ares de liberdade

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Cadastrado por

Emannuel Bento

Publicado em 17/03/2024 às 18:51 | Atualizado em 17/03/2024 às 19:45
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Sob os ares da redemocratização, em 1984, o Recife ganhou um jornal independente, satírico e politicamente incorreto, cujo slogan era: "Não recebemos de ninguém, pra poder meter o pau em todo mundo".

O "Papa-Figo" tinha entre os seus fundadores o jornalista Manoel Bione, que faleceu no sábado (16), aos 72 anos, após uma parada cardíaca - ele esteve internado por 12 dias por uma hemorragia no esôfago.

Nascido em Vicência, Zona da Mata de Pernambuco, Bione mudou-se para o Recife aos 15 anos. Também foi médico psiquiatra e cartunista, tendo colaborado para veículos como "Jornal do Commércio" e "Diario de Pernambuco", além do emblemático semanário carioca "O Pasquim".

O cartunista Romildo de Araújo Lima, o famoso "Ral" (1945-2023), e jornalista José Teles foram os outros fundadores do "Papa-Figo", que nasceu em uma época em que a censura ainda existia, mesmo que branda. Ainda no ápice da mordaça, eram os cartuns e as charges que conseguiam, de alguma forma, protestar contra o regime militar.

Ventos da liberdade

"O humor foi a grande saída para driblar a censura da ditadura. Quando os jornais adotaram a charge, isso ficou ainda mais evidente. Henfil dizia: 'é a mão do povo que desenha'", disse Bione à Revista Continente, em 2014.

As edições do "Papa-Figo" eram distribuídas na Livro 7, famosa livraria capitaneada por Tarcísio Pereira na Rua Sete de Setembro, nas sextas-feiras. "Quem viveu a ditadura sabia o que significava ter os ventos da liberdade soprando no país."

Tratando-se de uma publicação satírica, as menções aos políticos não eram nada agradáveis. Contudo, naqueles ventos de liberdade, aparecer no "Papa-Figo" tornou-se um símbolo de status.

Tanto é que, em vida, Bione chegou a relatar que foi questionado por um político local acerca do jornal. Contudo, não por tê-lo achincalhado, mas sim por nunca tê-lo mencionado nas páginas.

Um "Pasquim" local

ARQUIVO JOSÉ TELES
José Teles, Romildo de Araújo Lima ("Ral") e Manoel Bione, fundadores do jornal 'Papa-Figo' - ARQUIVO JOSÉ TELES

Antes de ser publicado no formato pelo qual hoje é lembrado, o "Papa-Figo" surgiu como uma página de cartuns e charges no "Jornal da Semana", feita por Ral. Depois, a publicação passou a ser um encarte de quatro páginas, no formato de tabloide.

Na década de 1980, Bione convida Ral (com quem que já havia trabalhado no humorístico "A Xepa") e José Teles para o semanário que circularia como um "jornal alternativo independente". O slogan citado no começo do texto foi criado por ele.

"A gente queria fazer 'O Pasquim' daqui. Fazíamos uma sátira aos jornais locais e aos políticos porque já era possível, já tínhamos essa liberdade. O Papa-Figo era feito numa mesa da churrascaria em frente à minha casa", rememorou Ral, na já citada reportagem da Continente.

Verve política na redemocratização

De acordo com José Teles, a primeira edição do "Papa-Figo" saiu em agosto de 1984, em plena disputa entre Paulo Maluf e Tancredo Neves na eleição indireta para presidente. "O primeiro exemplar do jornal foi todo em cima da eleição", relembrou, em texto no site Teles Toques.

A irreverência da publicação despertou atenção do cartunista Jaguar, um dos fundadores do "O Pasquim" (1969-1991). Assim, o "Papa-Figo" ganhou uma página no semanário alternativo carioca.

"Num tempo sem internet, eu ia à casa de Ral pegar a boneca do Papa-Figo do Pasquim, e levava pro Aeroporto, pra mandar por um serviço expresso de uma companhia aérea. Acho que nesse tempo nem havia Sedex", lembra Teles.

Por curiosidade, os criadores do "Papa-Figo" chegaram a ser acusados de copiarem o "Casseta & Planeta", fusão das turmas de duas publicações satíricas do Rio de Janeiro - a revista "Casseta Popular" e o tabloide "O Planeta Diário". Contudo, a inspiração vinha mesmo de Tarso de Castro, Jaguar e Sérgio Cabral, fundadores do "Pasquim".

'Vamos fazer uma sacanagem?'

Já na época pós-"O Pasquim", a publicação independente também contou com colaborações de Lailson, de Clériston e do jornalista Paulo Santos de Oliveira. Ral deixou o Papa-Figo em 1989, enquanto Teles saiu em 2000. Bione continuou a publicação, inclusive online. Ainda dá para visitar o site papafigo.com, onde é possível ler a seguinte anedota de Bione sobre a criação:

"No princípio era o verbo. Depois vieram os substantivos, os adjetivos e os palavrões. Me lembro como se fosse amanhã. Numa chuvosa manhã de sol de agosto de 1984, três imberbes jovens papeavam numa mesa de bar. 'Vamos fazer uma sacanagem?', sugeriu Bione. 'Já sei: criar um jornal', deduziu Teles. 'Que vai se chamar Papa-Figo', concluiu Ral."

Pesar

"Recebi com pesar a notícia que Manoel Bione, médico psiquiatra, jornalista, cartunista e fundador do jornal Papa-Figo, faleceu neste sábado. Ele foi uma pessoa irreverente, criativa e seu trabalho com o Papa-figo marcou uma época. Bione vai ser sempre lembrado como um cara inteligente, sagaz, de bem com a vida e da linha de frente da resistência democrática. Quero enviar à família e amigos meu abraço solidário", disse a Luciana Santos, ministra da Ciência e Tecnologia, em nota.

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