O corpo da estudante de direito Robeyoncé Lima, 27 anos, se move num desafio de sê-lo. É masculino por fora, mas na verdade é feminino. É dela, mas não é. Faltam-lhe seios e outras características físicas que - para os outros - confirmem sua feminilidade. "Em regra geral, o que lhe define mulher ou homem é o que você tem entre as pernas. Eu tenho dificuldade de me impor como mulher, porque as pessoas não se importam com o que está na sua cabeça, mas sim com o que é visível... É mulher, mas cadê o peito? Cadê a bunda? E a vagina? Você tem de provar fisicamente que é mulher", conta ela, primeira mulher transexual aprovada pela OAB-PE, numa conversa na Faculdade de Direito do Recife, onde estuda o último ano do curso.
A instituição de ensino, criada por dom Pedro I em 1827 e ligada à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é o lugar onde Robeyoncé é plenamente ela, sem ter que se corrigir. A Portaria Normativa nº 3, baixada pela universidade há quase um ano, permite que os nomes sociais de travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais sejam adotados no ambiente universitário, da chamada de presença aos documentos acadêmicos, e que usem o banheiro correspondente à identidade de gênero. "Era constrangedor eu usar o banheiro masculino; sentia que estava incomodando. Os homens não ficavam à vontade, nem eu. Procurava usar o banheiro quando não tivesse ninguém ou algum mais afastado", relata.
Foi graças ao clima arejado da faculdade que a estudante libertou-se. Entrou em 2011, já formada em geografia pela UFPE; assumiu-se Robeyoncé em janeiro de 2014, numa Semana LGBT. "Eu me aprisionava. Não queria mostrar às pessoas como eu era e me escondia de mim. Minha preocupação era mais com o julgamento das pessoas do que com a minha felicidade. E, então, eu procurava corresponder às expectativas: se quisessem que eu fosse homem, eu ia ser homem... Eu usava essa máscara até chegar à universidade e me aprofundar no debate da sexualidade. Foi libertador! Eu me encontrei comigo mesma!"
Convenções sociais estabelecem gênero e sexualidade numa perspectiva vertical e... opressora. Nessa lógica, a um corpo masculino não se associa outro gênero, que não o masculino, e não se atrela outro desejo, que não pelo sexo oposto, numa orientação heterossexual. A mulher ou o homem transexual, portanto, dilui totalmente esse modelo: trata-se de alguém que possui uma identidade de gênero diferente do gênero de nascimento; e que deseja viver conforme sua identidade, podendo ser hétero, homo, bi ou pansexual, do ponto de vista da orientação sexual. É o avesso da mulher e do homem cis, como são chamados aqueles que possuem a identidade de gênero compatível àquele definido pelo sexo biológico.
Há menos de um ano, Robeyoncé frequenta o Espaço Trans, no Hospital das Clínicas da UFPE, que oferece atendimento multidisciplinar para travestis, transexuais e transgêneros. Almeja fazer a a cirurgia de redesignificação sexual, devido ao estranhamento da genitália. A não-conformidade de gêneros já fez com que aplicasse silicone no peito de forma clandestina. "Anatomicamente falando, o peito está num lugar estratégico; seria uma forma de me impor e de não ter que corrigir as pessoas o tempo todo com relação ao meu gênero adequado. Já que a sociedade quer que eu prove, fisicamente, que eu sou mulher, então nada melhor do que um peito... A pessoa vai, no mínimo, se questionar... Mas confesso que é também por um pouco de vaidade".
A psicóloga Suzana Livadias é coordenadora do Espaço Trans, que atende hoje cerca de 170 pacientes. O trabalho do espaço leva em consideração a realidade da pessoa: os questionamentos que enfrenta, as críticas que sofre e a consequente marginalização. "Há diversas situações em que eles acham que têm de responder ao que as pessoas esperam. As pessoas foram forjadas a uma compreensão de que quem nasceu com genitália de homem vai se identificar como homem e gostar de mulher... É perigoso! Que modelo de pessoa é esse? O que é que faz alguém ser alguém? É o corpo quem define? Por outro lado, o corpo é, sim, uma representação simbólica e está condicionado ao gênero", incita a reflexão.
Além de seios vistosos, outro desejo de Robeyoncé é tornar nome civil o seu nome social. A causa é uma das que defenderá quando formar-se advogada. Há quem consiga o feito, mediante ficha limpa de antecedentes criminais, análise positiva ao Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), laudo médico do Espaço Trans (que não é emitido de pronto nem para todos os casos) e entendimento favorável do juiz. "Eu tenho vergonha de mostrar meu documento. E quando me chamam pelo nome civil não sei o que fazer... Se você me pergunta sobre o nome social, digo que é incompleto, apesar de reconhecer os avanços. Falta algo fundamental: para o direito, Robeyoncé não existe". Mas luta: "Não me conformo com o lugar que a sociedade me põe, à margem".
A vida da gente é política! É como se o corpo da gente falasse, gritasse, por nossa visibilidade... É um ato político natural."RL