“Eu não conseguia nem sonhar...”, fala a atriz Ana Flavia Cavalcanti, 35 anos, ao comentar a surpresa que foi ter um projeto seu fomentado pelo edital SP Cine. Trata-se de um curta, chamado Rã, em que assina roteiro, produção e codireção. Ainda atua, interpretando a própria mãe. É que o argumento para o roteiro foi tirado da primeira infância de Ana Flavia. E aí está o porquê de ela se surpreender tanto com a escolha: nunca antes imaginou que uma história sua, mulher negra e da periferia, fosse um dia "comprada". Mais adiante, na entrevista por telefone, ela expõe a raiz de toda essa questão: "Sonhar nunca foi permitido aos pretos".
Atriz caracterizada como Dóris, em "Malhação - Viva a Diferença" - Foto: João Cotta / Globo
Ana Flavia é agente - e consequência - de uma mudança em curso: a atriz serviu de referencial a “adolescentes pretos, afrodescendentes, periféricos”, Brasil afora, ao viver Dóris na novela teen Malhação – Viva a Diferença. Por meio da personagem, diretora de uma escola pública, a atriz falou, na ficção, daquilo que tão bem conhece na vida real.
Filha de um pai viciado em drogas e uma mãe empregada doméstica, Dóris foi salva pela educação ao formar-se em pedagogia na USP. Ana Flavia nasceu em Diadema, nos anos 80, quando a cidade paulista liderava no ranking de homicídios no País. Filha de empregada doméstica – hoje cuidadora –, cresceu em periferias e sempre estudou em escolas públicas. Frequentou, inclusive, supletivo – “Com senhoras e senhores, todos pretos e elas, empregadas domésticas.” Em Malhação, a mensagem de Ana Flavia Cavalcanti encontrou ressonância em Dóris, e vice-versa.
“Um dia, num bar, um senhor preto, com a mulher, se aproximou e disse: ‘Nós estamos aqui para agradecer o seu trabalho, a força da sua palavra. Você não tem noção de como está fazendo bem ao nosso povo’. Comecei a chorar, mexeu com tudo. Aquele homem preto, cheio de histórias e lutas...”, relembra a atriz, quando perguntada sobre a resposta do público à representatividade que lhe cabe na novela.
A participação de Ana Flavia em Malhação, certamente, contribuiu para os sonhos de telespectadores, sobretudo, negros. É algo oposto à surpresa da atriz ao realizar o próprio filme, aquilo que nem sonhou, porque lhe faltaram os referenciais, em quem se espelhar e sonhar - ou seja, faltaram negras, que nem ela, (nem só atuando, mas...) realizando seus próprios projetos. Ora, a diferença entre brancos e negros não está na cor, mas nas oportunidades, nas representatividades, no que foi historicamente construído e está socialmente mantido... por uma questão de cor.
Ana Flavia ostenta seu poderoso black, mas nem sempre foi assim: já alisou, quando adolescente, até aceitá-lo - Foto: Divulgação
Fora da personagem, a atuação de Ana Flavia é igualmente engajada: não engole racismo (nem deveria, afinal "é crime!", ela bem intervém) - inclusive, denunciou ataque que sofreu de uma produtora do programa PopStar, na Globo. Tampouco ignora o status quo: “Em todo lugar aonde vou, a primeira pergunta que me faço é quantos negros tem. Às vezes tem um, às vezes nenhum, porque frequento a classe média alta; quando tem, são os que estão servindo. E sei que isso não é uma coincidência. É manutenção de uma escravidão".
Apesar do peso da constatação, há mais otimismo do que pessimismo, ainda bem, quando analisa a evolução da luta contra o racismo. "O conhecimento é poderoso e muita coisa não tem volta. Quando você descobre um direito, você não abre mão. Depois que você sabe de uma coisa, você sabe. Não acredito que virá uma transformação das pessoas brancas, porque ninguém quer perder privilégios. Temos aliados brancos, sim, mas estou focada no fortalecimento de quilombo. A gente é muito desvalorizada, roubada e morta. Tem de mudar."
"A Babá Quer Passear"
Ana Flavia Cavalcanti também tem cutucado o racismo estrutural com a performance A Babá Quer Passear. Critica a negação do lazer e do convívio em família a profissionais como babás e empregadas domésticas. A ideia foi um sonho que a atriz teve: um “carrinho gigante” com uma babá dentro. Pediu para confeccionar o - nem tão - carrinho e, desde então, realiza a performance em endereços de luxo, como a rua Oscar Freire, em São Paulo, e o bairro do Leblon, no Rio.
Ana Flavia Cavalcanti em registro durante a performance - Foto: reprodução do Facebook
“Trata-se de invisibilidade versus visibilidade. Como não sou babá, e nesses lugares as pessoas são ‘culturais’, elas entendem a provocação: que elas vejam o que escondem; o que não querem ver. Mas elas não gostam. Eu sofro bastante desprezo”, relata a atriz, que, na infância, acompanhou a mãe em turnos na casa dos patrões. “Ninguém quer perder privilégio. Depois que comecei esse trabalho, converso sobre o assunto com amigos brancos e, ainda assim, todo mundo mantém empregada, paga mal e não quer perder... O que há tanto pra limpar?”, provoca a reflexão.
O desdém dos ricos à performance e à questão - “Já fiquei indignada, entupida, atravessada, pelo que vivi” - rendeu outro projeto, o solo-debate Serviçal. No palco de um teatro, ela convida negros a falarem dos trabalhos que já desempenharam ao longo da vida: “É muito forte! As pessoas ganham poder de fala”.