Comidas típicas, quadrilha e fogueira fazem parte da história do festejo
O interior de Pernambuco é uma das regiões onde a época de São João representa, historicamente, colheita e celebração. A professora Thaís Rigueira sabe bem o que é isso e mantém viva a tradição de festejar a época com amigos e familiares no município de Nazaré da Mata, na Mata Norte do Estado.
“A gente costuma comemorar muito. Antigamente, a minha família plantava milho no dia 19 de março, Dia de São José, para colher em junho e preparar a comida em casa. Minha avó tinha moedor, a gente fazia tudo de forma artesanal. Hoje em dia, a gente passou a comprar o milho porque é mais prático, mas ainda tenho muitos amigos que cultivam e colhem para cozinhar os pratos desta época. Este ano, muitas outras coisas estão diferentes”, afirma Thaís.
A mudança por conta do novo coronavírus alterou os planos da professora, que sempre costuma reunir amigos e família em um espaço, onde cada um leva seu prato típico, contratam músicos e vão vestidos a caráter, para dançar quadrilha e festejar. “Esse ano, como não pode ter aglomeração com mais de 10 pessoas, eu e meu marido chamamos mais alguns amigos e cada casal, este mês, vai fazer uma reunião na sua casa. A gente não vai dançar quadrilha, para manter a segurança, mas vamos nos caracterizar para não passar em branco”, conta a professora.
A Covid-19 também alterou os planos da aposentada Maria Maura Wanderley. Conhecida pela família e pelos amigos por ser uma cozinheira de mão cheia, o mês de junho é sempre marcado pelas comidas típicas que ela prepara com milho. “Sempre gostei de cozinhar, todo mundo da família gosta. Modéstia à parte, tudo o que eu faço, o pessoal elogia. As comidas juninas sempre estiveram presentes na minha vida, porque minha mãe amava e eu aprendi com ela a maioria dos pratos. Logo quando casei, uma vizinha me ensinou a fazer pamonha”, relembra.
As pamonhas são a marca registrada de Maria Maura no São João. Os pedidos são tantos que em 2019, pela primeira vez, ela fez por encomenda e foi um sucesso entre os clientes. “Ano passado, vendi mais de 600 pamonhas e já está todo mundo atrás de mim de novo para fazer no São João. Mas este ano não tem condições, por conta da atual situação”, explica a aposentada, que está em isolamento social em Aldeia, bairro de Camaragibe, no Grande Recife.
Além das comidas típicas, outro tradicional ponto da festa, as quadrilhas, também sofreram alterações pela impossibilidade de aglomeração – o que impediu a apresentação dos grupos. Para quem dança nesta época do ano, o São João vai ser diferente. O servidor público Vandré Cechinel, que se apresenta com a Quadrilha Raio de Sol há 13 anos, diz que é uma alegria participar do grupo.
“Danço na Raio desde 2006. A quadrilha foi fundada por Alana Nascimento, mãe de Leila Nascimento, minha namorada à época; atualmente somos casados e temos uma filha de 2 anos. Leila é a noiva mais linda que já vi! Participar da quadrilha era uma forma de estar mais perto dela e de fazer uma atividade artística. Fiquei encantado com a Raio desde a primeira vez que assisti, em 2003”, recorda, emocionado.
Dançar na quadrilha, que virou um símbolo de amor não só ao grupo, também reflete a alegria que Vandré tem nessa época do ano. “É a festa de que mais gosto. É uma celebração muito associada à memória afetiva, às comidas preparadas de forma coletiva, à fertilidade, à chuva, ao friozinho. Adoro o cheiro de fogueira, de milho assado, de fogos, as músicas... Tudo isso remete muito à minha infância, que passei em Afogados da Ingazeira, no Sertão do Pajeú. Isso fortaleceu meus laços com esses costumes”, conta.
Sem apresentações este ano, Vandré relembra o misto de responsabilidade e diversão que é fazer parte do grupo. “Nessa época, estamos sempre com aquele frio na barriga, perto de estrear um espetáculo novo. Quem assiste a uma apresentação de 25 minutos de uma quadrilha não imagina o quanto batalhamos. Sinto falta da mobilização que fazemos para que tudo dê certo. Quadrilha é, acima de tudo, união”, comenta.
Conhecendo as origens do São João
O São João é uma das principais festas comemoradas no Nordeste. Seja no interior ou nas capitais, o mês de junho reúne simbolismos e tradições que recontam anualmente a história desse festejo, quem tem suas origens numa festa pagã, como conta a doutora em História Moderna e Contemporânea e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Cibele Barbosa.
“A origem do São João remete a uma festa pagã. O crescimento do Cristianismo, principalmente na Europa, numa forma muito eficaz de adesão dos grupos e das comunidades populares europeias rurais, iniciou a substituição desses festejos, que existiam em comemoração a vários deuses. As populações passaram a aderir às figuras religiosas cristãs, nesse processo de assimilação dos antigos cultos pagãos europeus, substituídos por festas dedicadas aos santos”, explica Cibele.
As origens demonstradas pela pesquisadora revelam também o agradecimento a deuses da natureza, das plantações e colheitas, que também faziam parte das festas pagãs. “Eram muito populares, tanto na Antiguidade como em boa parte da Idade Média, os cultos ligados ao fogo. O fogo tinha uma presença marcante em vários povos que o cultuavam. E isso chega à Europa com o Império Romano, onde esses cultos são ligados a deuses como Afrodite, Adônis, o próprio Cronos, que é o patrono da agricultura. Esses cultos também estão ligados às populações rurais, por conta das colheitas e da representação do dia 24 de junho, que é solstício de verão no Hemisfério Norte. Então falar de sol e fogo é falar do momento da colheita, onde fogueiras eram acesas e cultos aos deuses naturais aconteciam com pedidos de fertilidade e agradecimento pela colheita”, complementa Cibele.
“Com a cristianização, existe esse movimento de mutação. A festa ao fogo permanece, a gratidão à colheita continua, mas com as imposições do cristianismo, ao invés de determinados deuses, passa-se a cultuar a figura de São João Batista, que tem o 24 de junho como uma referência ao Evangelho de Lucas, que afirma que João Batista nasceu seis meses antes de Jesus. Por ser conhecido como o que anuncia a vinda de Cristo, houve esse encaixe de datas no calendário cristão”, acrescenta.
No Brasil, a festa chega com os portugueses, sendo a primeira referência conhecida sobre o festejo registrada pelo jesuíta Fernão Cardim, explica Cibele. “Ele escreve sobre a festa como uma das festas mais animadas, com fogueira e as pessoas festejando em torno do fogo. O São João é uma tradição rural e popular, e, aqui no Nordeste, também se encaixa com os festejos ligados à colheita do milho. O seu contexto musical vem com a chegada da Família Real ao Brasil, onde as chamadas contradanças, de origem francesa, se transformaram nas quadrilhas, por sua dança em pares enfileirados. Ao longo do tempo, o costume vai se perdendo em algumas partes do Brasil, mas se mantém muito forte no Nordeste. Então o São João tem essa relação com comunidades mais rurais, antigos cultos pagãos e o modo como o Cristianismo modificou essa festa para ganhar maior adesão dos seus fiéis”, finaliza a pesquisadora.