Do interior à capital: tradições marcam a festa junina em Pernambuco

Mariane Monteiro
Mariane Monteiro
Publicado em 23/06/2020 às 11:22
Fogueiras, que estão proibidas este ano, fazem parte da história do São João: Foto: Aquivo JC Imagem
Fogueiras, que estão proibidas este ano, fazem parte da história do São João: Foto: Aquivo JC Imagem

Comidas típicas, quadrilha e fogueira fazem parte da história do festejo

O interior de Pernambuco é uma das regiões onde a época de São João representa, historicamente, colheita e celebração. A professora Thaís Rigueira sabe bem o que é isso e mantém viva a tradição de festejar a época com amigos e familiares no município de Nazaré da Mata, na Mata Norte do Estado.

“A gente costuma comemorar muito. Antigamente, a minha família plantava milho no dia 19 de março, Dia de São José, para colher em junho e preparar a comida em casa. Minha avó tinha moedor, a gente fazia tudo de forma artesanal. Hoje em dia, a gente passou a comprar o milho porque é mais prático, mas ainda tenho muitos amigos que cultivam e colhem para cozinhar os pratos desta época. Este ano, muitas outras coisas estão diferentes”, afirma Thaís.

Thaís Rigueira e o marido, Renato Brito, este ano vão comemorar em casa com um grupo de oito amigos. Foto: Aquivo Pessoal

A mudança por conta do novo coronavírus alterou os planos da professora, que sempre costuma reunir amigos e família em um espaço, onde cada um leva seu prato típico, contratam músicos e vão vestidos a caráter, para dançar quadrilha e festejar. “Esse ano, como não pode ter aglomeração com mais de 10 pessoas, eu e meu marido chamamos mais alguns amigos e cada casal, este mês, vai fazer uma reunião na sua casa. A gente não vai dançar quadrilha, para manter a segurança, mas vamos nos caracterizar para não passar em branco”, conta a professora.

Maria Maura Wanderley, que passa o isolamento social em Aldeia, suspendeu as vendas das pamonhas neste São João. Foto: Arquivo Pessoal

A Covid-19 também alterou os planos da aposentada Maria Maura Wanderley. Conhecida pela família e pelos amigos por ser uma cozinheira de mão cheia, o mês de junho é sempre marcado pelas comidas típicas que ela prepara com milho. “Sempre gostei de cozinhar, todo mundo da família gosta. Modéstia à parte, tudo o que eu faço, o pessoal elogia. As comidas juninas sempre estiveram presentes na minha vida, porque minha mãe amava e eu aprendi com ela a maioria dos pratos. Logo quando casei, uma vizinha me ensinou a fazer pamonha”, relembra.

As pamonhas são a marca registrada de Maria Maura no São João. Os pedidos são tantos que em 2019, pela primeira vez, ela fez por encomenda e foi um sucesso entre os clientes. “Ano passado, vendi mais de 600 pamonhas e já está todo mundo atrás de mim de novo para fazer no São João. Mas este ano não tem condições, por conta da atual situação”, explica a aposentada, que está em isolamento social em Aldeia, bairro de Camaragibe, no Grande Recife.

Pamonhas feitas por Maria Maura são sucesso entre amigos e familiares. Foto: Arquivo Pessoal

Além das comidas típicas, outro tradicional ponto da festa, as quadrilhas, também sofreram alterações pela impossibilidade de aglomeração – o que impediu a apresentação dos grupos. Para quem dança nesta época do ano, o São João vai ser diferente. O servidor público Vandré Cechinel, que se apresenta com a Quadrilha Raio de Sol há 13 anos, diz que é uma alegria participar do grupo. 

“Danço na Raio desde 2006. A quadrilha foi fundada por Alana Nascimento, mãe de Leila Nascimento, minha namorada à época; atualmente somos casados e temos uma filha de 2 anos. Leila é a noiva mais linda que já vi! Participar da quadrilha era uma forma de estar mais perto dela e de fazer uma atividade artística. Fiquei encantado com a Raio desde a primeira vez que assisti, em 2003”, recorda, emocionado.

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Com as apresentações suspensas, Vandré lembra com muito carinho da Quadrilha Raio de Sol. Foto: Arquivo Pessoal

Dançar na quadrilha, que virou um símbolo de amor não só ao grupo, também reflete a alegria que Vandré tem nessa época do ano. “É a festa de que mais gosto. É uma celebração muito associada à memória afetiva, às comidas preparadas de forma coletiva, à fertilidade, à chuva, ao friozinho. Adoro o cheiro de fogueira, de milho assado, de fogos, as músicas... Tudo isso remete muito à minha infância, que passei em Afogados da Ingazeira, no Sertão do Pajeú. Isso fortaleceu meus laços com esses costumes”, conta.

Sem apresentações este ano, Vandré relembra o misto de responsabilidade e diversão que é fazer parte do grupo. “Nessa época, estamos sempre com aquele frio na barriga, perto de estrear um espetáculo novo. Quem assiste a uma apresentação de 25 minutos de uma quadrilha não imagina o quanto batalhamos. Sinto falta da mobilização que fazemos para que tudo dê certo. Quadrilha é, acima de tudo, união”, comenta.

Decoração junina traz simbolismos históricos. Foto: Arquivo JC Imagem

Conhecendo as origens do São João

O São João é uma das principais festas comemoradas no Nordeste. Seja no interior ou nas capitais, o mês de junho reúne simbolismos e tradições que recontam anualmente a história desse festejo, quem tem suas origens numa festa pagã, como conta a doutora em História Moderna e Contemporânea e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Cibele Barbosa.

“A origem do São João remete a uma festa pagã. O crescimento do Cristianismo, principalmente na Europa, numa forma muito eficaz de adesão dos grupos e das comunidades populares europeias rurais, iniciou a substituição desses festejos, que existiam em comemoração a vários deuses. As populações passaram a aderir às figuras religiosas cristãs, nesse processo de assimilação dos antigos cultos pagãos europeus, substituídos por festas dedicadas aos santos”, explica Cibele. 

As origens demonstradas pela pesquisadora revelam também o agradecimento a deuses da natureza, das plantações e colheitas, que também faziam parte das festas pagãs. “Eram muito populares, tanto na Antiguidade como em boa parte da Idade Média, os cultos ligados ao fogo. O fogo tinha uma presença marcante em vários povos que o cultuavam. E isso chega à Europa com o Império Romano, onde esses cultos são ligados a deuses como Afrodite, Adônis, o próprio Cronos, que é o patrono da agricultura. Esses cultos também estão ligados às populações rurais, por conta das colheitas e da representação do dia 24 de junho, que é solstício de verão no Hemisfério Norte. Então falar de sol e fogo é falar  do momento da colheita, onde fogueiras eram acesas e cultos aos deuses naturais aconteciam com pedidos de fertilidade e agradecimento pela colheita”, complementa Cibele.

“Com a cristianização, existe esse movimento de mutação. A festa ao fogo permanece, a gratidão à colheita continua, mas com as imposições do cristianismo, ao invés de determinados deuses, passa-se a cultuar a figura de São João Batista, que tem o 24 de junho como uma referência ao Evangelho de Lucas, que afirma que João Batista nasceu seis meses antes de Jesus. Por ser conhecido como o que anuncia a vinda de Cristo, houve esse encaixe de datas no calendário cristão”, acrescenta.

No Brasil, a festa chega com os portugueses, sendo a primeira referência conhecida sobre o festejo registrada pelo jesuíta Fernão Cardim, explica Cibele. “Ele escreve sobre a festa como uma das festas mais animadas, com fogueira e as pessoas festejando em torno do fogo. O São João é uma tradição rural e popular, e, aqui no Nordeste, também se encaixa com os festejos ligados à colheita do milho. O seu contexto musical vem com a chegada da Família Real ao Brasil, onde as chamadas contradanças, de origem francesa, se transformaram nas quadrilhas, por sua dança em pares enfileirados. Ao longo do tempo, o costume vai se perdendo em algumas partes do Brasil, mas se mantém muito forte no Nordeste. Então o São João tem essa relação com comunidades mais rurais, antigos cultos pagãos e o modo como o Cristianismo modificou essa festa para ganhar maior adesão dos seus fiéis”, finaliza a pesquisadora.

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