Artigo: Britney Spears e a via-crúcis da estrela do pop
Por Gisele Martorelli, advogada especializada em direito de família e sucessões
O conteúdo do depoimento prestado pela estrela pop Britney Spears na audiência do último dia 23, realizada na Corte de Justiça do Estado da Califórnia, é, para dizer o mínimo, chocante. Desde o final do ano passado cresciam os rumores de que a curatela — espécie de guarda aplicada para maiores de idade — exercida pelo pai da estrela americana há mais de treze anos era marcada por abusividades e desmandos dos mais diversos tipos. Após o depoimento, os rumores foram confirmados.
Nos aproximados vinte e quatro minutos de fala que foram “vazados” por terceiros ao público — e que são tão somente uma parte do depoimento da cantora — ela denuncia ter sido forçada a trabalhar contra a própria vontade, ter recebido diversas ameaças de que se não seguisse as regras impostas pelo plano de curatela, teria, por exemplo, o direito de visitação aos filhos negado.
Revela que dentre outras desumanidades, lhe submeteram a internamento compulsório injustificado e obrigaram-na a colocar um DIU contra sua vontade. Embora seja seu desejo casar e ter mais filhos, atualmente, em razão das regras proibitivas impostas pela Justiça americana, a cantora não pode fazê-lo. Tal proibição é inaceitável. Para se ter um parâmetro do quão absurda e retrógrada é essa restrição, percebam que aqui no Brasil, a Lei n. 13.146/15 - seguindo uma tendência mundial de proteção às garantias fundamentais das pessoas com impedimentos — enfatiza que o indivíduo com deficiência, seja qual for sua natureza e grau, poderá exercer livre e plenamente os direitos sexuais e reprodutivos.
O contexto piora. Apesar de estar constantemente dopada pelo uso da medicação Lítio e sem condições, portanto, físico-emocionais de trabalhar, o plano de curatela de Britney lhe impunha o dever de fazer singles, álbuns, gravar videoclipes, realizar turnês, numa rotina de horas de trabalho que por muito tempo permaneceu de segunda a domingo. Em sua declaração, a diva pop expôs que durante as gravações dos seus últimos álbuns estava totalmente esgotada e vulnerável. E embora tivesse expressado inúmeras vezes não querer trabalhar em tais produções, terminava cedendo às ameaças de que se não o fizesse, as limitações do seu regime de curatela se tornaram muito mais severas.
Comportamento de Britney Spears pode dar pistas sobre o ocorrido
Por mais que não tenhamos acesso aos detalhes do processo – e aqui, caros leitores, cabe a importante ressalva de que muitas vezes a verdade de um litígio permanece oculta até mesmo dos que dele participaram ativamente – as letras das músicas de Spears e a mídia disponível nas diversas plataformas de streaming, cobrindo os eventos dos últimos anos referentes à sua carreira, são provas cabais não apenas da debilidade de saúde e inaptidão da cantora para o trabalho, mas de seu desejo em não querer participar das gravações, ensaios, shows e turnês.
Um exemplo bastante emblemático desse contexto aconteceu em 2019, quando a cantora, contra a sua vontade, teve que fazer um anúncio formal de abertura de sessão de shows que aconteceriam na cidade de Las Vegas. Nos vídeos que registraram o momento, a diva emerge no palco acompanhada de um cenário apoteótico de fogos e luzes, desce uma série de degraus de maneira absolutamente tímida, desconfortável e descompassada com o ritmo da música, e caminha pelo tapete vermelho por longos dois minutos, durante os quais não se comunica com ninguém, entrando logo em seguida no seu carro.
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O nome desse show era “dominação” e a música que tocava enquanto a estrela caminhava até o seu carro em desespero, vencida pelas circunstâncias atrozes que a aprisionavam, anunciava o seguinte: “é bom você trabalhar, vadia”. Afinal, Britney estava trabalhando para os interesses de quem?
A dor refletida na arte
A nomeação de Jamie Spears, pai da cantora, para exercer a curatela da filha foi realizada com o propósito de ajudá-la na tomada de decisões, enquanto a cantora se recuperava do grave quadro de dependência química e depressão que lhe acometia. Não se sabe, entretanto, a partir de quando, o intuito primordial do instituto – defender o melhor interesse do curatelado – se desvirtuou e passou a atender, isso sim, aos interesses econômicos do genitor e daqueles que continuaram e continuam lucrando milhões às custas do trabalho árduo e adoecido da estrela pop.
A dor da artista está refletida na sua arte. Se antes do escândalo envolvendo a curatela de Spears a interpretação das canções Piece of Me (um pedaço de mim) e Lucky (sortuda) já eram tristes, após termos conhecimento dos bastidores do que vinha acontecendo com a cantora ao longo da última década, os versos revelam desespero, um estado devastador da condição humana.
Nesse contexto, inevitável se perguntar, o que aconteceu com o dever de fiscalização do juízo que determinou e esteve responsável pelo acompanhamento da curatela da cantora ao longo dos últimos anos? Ainda que Britney estivesse sendo ameaçada a não revelar o que vinha lhe ocorrendo, fatos objetivos no processo demonstravam o estado de servidão a que ela fora submetida: apesar do grave estado de saúde que ensejara a determinação da curatela, a diva pop foi submetida a carga horária de trabalho desumana, acompanhadas de quase nenhum retorno econômico próprio.
Como está sendo administrada a fortuna milionária adquirida durante todo esse tempo enquanto Britney ganha uma mesada irrisória? Em qual medida a pressão para que a cantora trabalhe contra a sua vontade está relacionada a interesses obscuros dos próprios familiares em negociar a contratação milionária com os grandes produtores? A quem essa curatela, enfim, no contexto atual, em que a cantora veio a público clamar que deseja se sentir ouvida – “estou dizendo isso de novo, então talvez você possa entender a profundidade, o grau e o dano que eles me causaram” – está beneficiando?
O caminho de sofrimento e abusos prolongados por anos que a diva pop vem enfrentando, projeta holofotes sobre a necessidade de que as causas nas quais se discute a capacidade civil do indivíduo devam se submeter a mecanismos de fiscalização redobrados. Não basta garantir a possibilidade de interpor um recurso para reformar eventual decisão desfavorável. Faz-se urgente que o próprio Judiciário – aqui no Brasil através do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Ministério Público – desenvolva mecanismos que concretizem fiscalização efetiva e regular dos processos de interdições, independente de pedido expresso de quaisquer dos advogados das partes.
Não é difícil imaginar a poderosa trama de interesses e disputas pessoais/econômicas que estão por trás do enredo assombroso de fatos relacionados à curatela da Britney. E com isso, a enorme pressão e pesadelo que ela vem atravessando para lutar pelo seu direito de retomar a administração da própria vida. Seu gesto de bravura tem inspirado e ao mesmo tempo deixado milhões de pessoas em alerta, protestando contra o que está acontecendo com a princesa do pop. Sua liberdade, torcemos, virá marcada de fortes simbolismos sociais, representará mais uma vitória nesse contexto social sombrio que vem assolando o mundo nos últimos anos. #FreeBritney.