Cena de novela é criticada por sugerir "racismo reverso"; autora pede desculpas: "Erro grosseiro"
Tomada de "Nos Tempos do Imperador" é questionada por texto que promove desinformação em se tratando de uma produção que é baseada na história do Brasil
Uma cena da novela das seis da TV Globo, "Nos Tempos do Imperador", exibida nesta segunda-feira (23), foi criticada por sugerir a existência de racismo reverso - ou seja, de que pretos oprimem brancos por causa da cor. Racismo reverso é algo inexistente, uma vez que, para oprimir, é necessário deter o poder, e este sempre foi exercido pelos brancos sobre os pretos.
Na cena, o personagem Samuel, vivido pelo ator Michel Gomes, que é negro, diz o seguinte a Pilar, papel de Gabriela Medvedovski, que é branca: "Só porque você é branca não pode morar na Pequena África? Como queremos ter os mesmos direitos se fazemos com os brancos as mesmas coisas que eles fazem com a gente?".
"Pessoas negras nem eram consideradas seres humanos"
O influenciador e especialista em Marketing Digital AD Junior compartilhou a cena e problematizou sobre quais reflexos ela pode causar: "São cenas como essa que viram verdades para pessoas desinformadas sobre o período da escravidão". Isso porque, como ele ressalta, naquele tempo, pessoas pretas sequer eram consideradas seres humanos. Quanto mais um rapaz preto poderia sentar num banco de praça - tal qual na cena - com uma moça branca...
"Pessoas negras nem eram consideradas seres humanos e nem poderiam de fato segregar pessoas. Sem poder. Os brancos poderiam morar até lá no centro da Pequena África, se quisessem. Eles são e eram DONOS de Tudooo… Pessoas negras viviam em regime de exceção. Um homem preto sentado num banco de uma praça com uma mulher branca seria um ET que está vistando a sua namorada em Marte… primeiro, porque pessoas negras não podiam 'vadiar', ou seja, andar sem destino e sentar no banco da praça!", contextualizou AD Júnior.
"No Brasil, ainda, em algumas cidades históricas, é possível visitar as ruas de trás e até no Rio de Janeiro pessoas negras não podiam andar em algumas ruas, haviam as ruelas por trás, as vielas, onde essas pessoas poderiam andar… na reforma de Pereira Passos [prefeito do Rio de Janeiro], por exemplo, em algumas ruas havia até código de vestimenta. OK? Imagina sentar na praça de mãos dadas", continuou o influenciador.
"A fala de um homem negro no período da escravidão dessa forma [da cena] seria tão bizarra que chega a assustar quem assiste a uma cena dessas. Quem foi o ser que escreveu esse texto?!", questionou AD Júnior. "Aplicar o conceito de racismo reverso numa fala é muito perigoso e essa cena vai morar na cabeça de milhares de pessoas. Um desserviço total."
Outros incômodos
A jornalista e influenciadora digital Maíra Azevedo, mais conhecida como Tia Má, também repercutiu a cena: "Eu li umas três vezes o diálogo e fiquei imaginando quem propôs o texto e a sensação do ator ao ter que falar o que estava no roteiro, e se por um segundo a equipe imaginou o quanto uma cena de alguns segundos pode colaborar para uma ideia equivocada".
"Durante o período escravagista, mesmo os negros alforriados não podiam circular livremente pelas ruas. É um homem preto JAMAIS poderia tá sentado sozinho com uma mulher branca no meio da rua. Ele seria preso, decapitado", expõe Tia Má em sua rede social.
Ela disse, inclusive, que já havia ficado incomodada com outras cenas exibidas em "Nos Tempos do Imperador". "A personagem de Gabriela Medvedovski quando o pai vai apresentá-la para seu noivo, ela se 'fantasia' de escrava, já que está sendo vendida. O subtexto, pra mim, soou como se fosse o aviso de que mulheres pretas e brancas têm 'valores' diferentes."
"Eu quero sempre acreditar na boa vontade das pessoas, na intenção de fazer o melhor, por isso é fundamental ter um diálogo, conversar com quem estuda sobre o tema. 'Novela de época' tem muita responsabilidade, pois muita gente vai ter como referência para falar da história", completou Tia Má.
Pedido de desculpas
Entre as comentários na publicação de AD Júnior está o de Thereza Falcão, autora da novela "Nos Tempos do Imperador" junto com Alessandro Marson. Ela pediu desculpas e disse que, ao assistir à cena de casa, também ficou impressionada.
"Pedimos muitas desculpas. Eu mesma, quando vi a cena aqui em casa, falei: 'O que foi isso?'. Todos os capítulos que vão ao ar até o 24 foram escritos em 2018, gravados na ampla maioria em 2019. À época não contávamos com uma assessoria especializada, o que só aconteceu no ano passado, com a entrada do Nei Lopes. Hoje assisto a muitas cenas com uma sensação muito longínqua. Mais uma vez, pedimos desculpas por cometer um erro grosseiro como esse", escreveu Thereza Falcão.