Quando Duchamp, no começo do interminável século 20, batizou de “Fonte” aquele urinol branco, não apenas oficializou a autonomia dos artistas para decidir que qualquer objeto poderia ser considerado arte. Inaugurou, com seu gesto, uma tradição que apenas se estende nestes anos do impalpável século 21: o artista – e sobretudo ele – tem a premissa e o poder de retirar elementos ordinários de seus contextos e, ao ressignificá-los em novos usos e ambientes, desconstruir noções bem estabelecidas de expectativa, normalidade e rotina. Confirmando a poética que lhe faz um dos nomes mais respeitados da arte brasileira contemporânea, o pernambucano Marcelo Silveira tem provocado alterações nas percepções mais rotineiras da população deste município a 180 quilômetros do Recife. Com madeira de árvores mortes, cadeiras velhas e até crina de cavalo, interferido, a seu modo, para que se pense ali como o mundo se estabelece para ser o que é.
Silveira consolidou sua trajetória no Recife dos anos 1990, quando suas esculturas de madeira e objetos apropriados começavam a chamar a atenção de grandes colecionadores, instituições e bienais como a do Mercosul ou a de São Paulo, ao insinuar tensões entre, por exemplo, firmeza e iminência da queda. Nas obras de grandes dimensões, metáforas possíveis sobre confirmação e renovação estimulavam o questionamento de certezas.
Já expostas nas ruas do Recife, as grandes esferas de madeira da obra Entre a surpresa e o que se espera têm feito, por exemplo, muita gente parar para repensar a trajetória em algumas das principais ruas e avenidas de Belo Jardim. “Fotografamos e filmamos algumas reações. Tem gente que fala até que é coisa de político para atrapalhar o caminho das pessoas”, diverte-se Marcelo.
A residência de Marcelo Silveira em Belo Jardim teve início em 20 de março. Até completar um total de oito obras dispostas em espaços diversos, um trabalho por vez é instalado a cada semana. Sem quaisquer pretensões de induzir à uniformidade de pensamentos ou discursos. “Este é mesmo um projeto que propõe mais dúvidas do que certezas. A partir dos elementos mais conhecidos, podemos chegar ao inusitado, ao novo, ao desconhecido”, ele discorre.
No campus local do Instituto de Tecnologia e Ciência de Pernambuco de Pernambuco ele colocou, noutro exemplo de obra, o trabalho Bochinche: teias formadas de fios de couro pendem de esferas de madeira alocadas no teto, sugerindo a fluidez e a reconfirmação de fronteiras. “Os alunos amarram de formas diferentes as teias, dando novas leituras à obra”, comemora o artista.
Na próxima semana, uma praça da cidade vai receber o trabalho batizado como a frase: “Espero que não chova”. Trata-se de uma simples estrutura de um circo sem lona. Numa cidade com série crise hídrica há três anos, onde água inexiste nas torneiras, a obra pode pode provocar reflexões desconfortáveis. De novo, Marcelo confirma: na arte contemporânea, o conceito confere a contundência ao objeto posteriormente derivado. Apenas o conceito, se assim se desejar, é o próprio objeto da arte.
Com a presença constante das curadoras Cristiana Tejo e Kiki Mazzucchelli, Marcelo Silveira tem a companhia de uma dezena de pessoas para executar seu projeto de residência sob o patrocínio do Instituto Conceição Moura, braço cultural e social da indústria de baterias Moura, surgida na cidade.
INTERIORIZAÇÃO DO CONTEMPORÂNEO
“Num momento em que faltam políticas oficiais importantes para ações nas artes visuais de Pernambuco, é muito oportuno e interessante ver uma iniciativa como essa, privada, de interiorização da arte contemporânea”, diz Cristiana Tejo, que veio de Lisboa, onde mora atualmente, para participar do projeto. “Nossa proposta é a arte na vida das pessoas, em seu dia a dia, sem situações ou cenários especiais. O legado esperado é o que fica em cada sujeito que participa das experiências propostas. O que se deixa em Belo Jardim é a possibilidade de que qualquer lugar pode ser um centro de produção de arte contemporânea e pensamento crítico, que isto não se restringe aos grandes centros”, diz Mariana Moura, presidente do instituto.
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Propriedade da família Moura, a antiga fábrica de doces Mariola, no centro de Belo Jardim, teve a estrutura recuperada para funcionar como ateliê temporário de Belo Jardim, um ganho, portanto, imediato para o patrimônio histórico-arquitetônico da cidade. Para ter retorno de sua audiência, Silveira, antes de outros sentidos, a seduz especialmente pelo paladar. Também uma vez por semana, um jantar é armado, com ingredientes frescos e locais, para um grupo de convidados como estudantes ou membros do “poder constituído” local possam conversar descontraidamente sobre a presença dessas obras na rotina da cidade.
O projeto deve ter continuidade. “A cada ano, um artista deve fixar residência ali”, adianta Cristiana Tejo. Enquanto Marcelo Silveira vai se espalhando por Belo Jardim, a população vai se divertindo entre interrogações. No meio da uma velha rua comercial do centro, uma loja fictícia foi instalada pelo artista. No interior exíguo, prateleiras vazias nas laterais e uma estante de fundo com dezenas de vidros quebrados.
Quando perguntados sobre o valor ou utilidade dos cacos, uma dupla de monitores-atores responde citando o nome da falsa loja: “Só de Bonito!”. Recuperados do esquecimento, objetos como o antigo vaso quebrado adquirem nova funcionalidade insuspeita: numa composição estranhamente harmônica, acionar a talvez memória de uma avó a quem tenha pertencido.