Passagem

Dois amigos. Por Ricardo Leitão

Lailson de Holanda não foi só um cartunista; foi um dos mais criativos cartunistas e ilustradores de sua geração, publicado em jornais e revistas de grande circulação.

Imagem do autor
Cadastrado por

Jamildo Melo

Publicado em 28/10/2021 às 10:04 | Atualizado em 28/10/2021 às 11:14
Notícia
X

Por Ricardo Leitão, em artigo enviado ao blog

Tarcísio Pereira, fundador da Livro 7, não foi só um livreiro; foi um dos mais inovadores livreiros do País. Lailson de Holanda não foi só um cartunista; foi um dos mais criativos cartunistas e ilustradores de sua geração, publicado em jornais e revistas de grande circulação. Por cerca de cinco décadas, tive a alegria de conviver com os dois. Também trabalhei com eles. Nas últimas conversas, tratamos de novos projetos: Tarcísio apostava nos livros digitais; Lailson tinha ideias sobre um álbum de quadrinhos tendo por tema o bicentenário da Independência.

Com a diferença de dez meses, Tarcísio e Lailson foram mortos pela pandemia. Tarcísio em janeiro passado; Lailson na última terça-feira, dia da aprovação do relatório final da CPI da Covid. A dor de perder dois amigos queridos é como perder um pedaço do passado e um pedaço do futuro. Dividimos tensões, medos e esperanças nos anos de chumbo da ditadura, quando a Livro 7 se transformou numa espécie de oásis de liberdade na rua Sete de Setembro, centro do Recife.

Lá, sigilosamente, Tarcísio vendia jornais da imprensa alternativa e aos sábados promovia rodas de samba animadas com caipirinhas. Sempre aparecia alguém para arranhar o violão, eu um deles; mais raramente, Lailson, então guitarrista aferrado aos timbres experimentais do rock. Rolavam Chico Buarque, Milton Nascimento e, nas emergências, uma vaquinha para pagamento de advogados de presos políticos.

No sábado de Carnaval todas as tribos convergiam para a frente da Livro 7 para o desfile do “Nóis sofre, mas nóis goza”, bloco anarco-armorial, teúdo e manteúdo por Tarcísio e asseclas. O “Nóis sofre” tinha a errância como característica: dada a alta calibragem etílica de seus integrantes, só com dificuldade conseguia se mover e, quando conseguia, não sabia para onde ir. Todos os anos, Lailson desenhava as camisas do bloco.

Ao assumir a direção da Companhia Editora de Pernambuco, a Cepe, convidei os dois para trabalhar comigo. Tarcísio, de início, ficou no Conselho Editorial, passando em seguida a dirigir a Superintendência de Vendas e Marketing. Lailson desenvolveu projeto de perfis biográficos que, bem sucedido, se transformou em coleção editorial da Cepe.

Nesse momento, não irá me apascentar ouvir de alguém que eles são dois em 606 mil brasileiros vitimados pelo morticínio. Como não apascentaria qualquer pessoa que tenha perdido o seu filho, o seu pai, a sua irmã, a sua mãe, o seu amigo ou amiga.Tarcísio e Lailson foram dois grandes amigos e dói ainda mais perdê-los ouvindo o escárnio de um imbecil sobre vacinas.

Miguel Falcão
Lailson - Miguel Falcão

Que penas merece o presidente da República por seu negacionismo, sua pulsão de morte, sua sabotagem às medidas de prevenção, sua prevaricação, seu charlatanismo, sua conivência com a corrupção no Ministério da Saúde? A CPI da Covid requereu seu indiciamento em 9 crimes e calcula uma pena mínima de 80 anos de cadeia. Crimes de responsabilidade que lhe foram imputados podem desencadear um processo de impeachment.

A punição é justa e pedagógica. No entanto, não nos devolverá Tarcísio e Lailson, nem devolverá as centenas de milhares de mortos às suas famílias, nem os milhões de sequelados à vida normal. São crianças, mulheres e homens que sofreram como outros, em tantos países. Contudo, no Brasil sofreram mais, em decorrência da criminosa incompetência do pior governo da história do País.

Chegaremos à tragédia dos 700 mil mortos até o final do ano? Infectologistas supõem que não. No entanto, alertam para a flexibilização acelerada das medidas de restrição e para o comportamento pró-vírus de Jair Bolsonaro. Não é só mentir uma vez sobre a relação entre a vacina e a Aids, o que já lhe valeu uma queixa crime no Supremo Tribunal Federal. Mas mentir sistematicamente, em favor da Covid-19 e contra os brasileiros. Para tanto, valendo-se até do plenário das Nações Unidas, onde defendeu o uso de medicamentos contra a pandemia comprovadamente ineficazes.

ANTONIO AUGUSTO/PGR
Augusto Aras, PGR - ANTONIO AUGUSTO/PGR

O relatório da CPI da Covid, aprovado pelos senadores da comissão, está nas mãos do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, indicado para o cargo por Bolsonaro. Cabe a ele determinar novas investigações ou desconsiderar as denúncias da CPI e arquivar o caso.

Talvez Aras tenha pela frente uma das decisões mais importantes de sua vida. Sobre os seus ombros, estão os olhares de milhões de pessoas que ainda acreditam na justiça devida aos 606 mil mortos. Juntemos o nosso olhar a esses olhares. Por todos os brasileiros vitimados, suas famílias, parentes e amigos. Por Tarcísio Pereira e Lailson de Holanda.

Tags

Autor