7 de setembro: Após 40 anos de exploração, F. foi resgatada e não entendeu. Sentiu medo da liberdade que nunca teve
Nas comemorações do 7 de setembro, Bicentenário da Independência do Brasil, a escravidão é discutida como instrumento que perpetuou as desigualdades ao longo a história. O País foi a nação que mais importou escravos no mundo e o último a proclamar a abolição, em 1888
O patrão P. não impediu a entrada da equipe do Ministério Público do Trabalho (MPT) na sua casa, em Caruaru. Estavam ali, por conta de uma denúncia anônima. Uma mulher trabalhava há quase 40 anos na residência da família, sem receber salário nem qualquer benefício trabalhista. A condição caracteriza trabalho análogo ao de escravo.
Nascida em uma família de 12 irmãos, na zona rural de Caruaru, F. foi entregue por sua mãe àquele casal, quando tinha apenas 10 anos. Seria uma boca a menos para passar fome dentro de casa e a menina poderia ter um futuro melhor.
Desde pequena, a criança já tomava conta dos dois "irmãos", que nasceram deficientes. Filhos da dona da casa, passou a se dedicar a eles. Na narrativa dos patrões, F. era “uma pessoa da família”. O argumento servia para justificar porque ela não recebia salário, não tirava férias nem recebia benefícios trabalhistas.
F. arrumava os ‘irmãos’ para a escola, mas nunca frequentou uma sala de aula. Não era privada de sair, mas só passeava com alguém da residência. Nunca teve namorado nem filhos. Desde que foi entregue ao casal, perdeu o contato com sua família biológica.
Escravidão moderna e 200 anos de Independência do Brasil
Nas comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil, a escravidão é discutida como instrumento que perpetuou as desigualdades ao longo a história. O País foi a nação que mais importou escravos no mundo e o último a proclamar a abolição, em 1888.
Mais de 134 anos após a libertação dos escravizados, no século 21, ainda se convive com a escravidão moderna. Nos últimos anos, vêm aumentando as denúncias de pessoas vivendo em condições de trabalho análogas à de escravo no Brasil. F. é um desses casos e foi resgatada da casa dos patrões.
“É preciso entender que aquela figura do negro açoitado no pelourinho, não existe mais. Não é preciso estar preso e apanhando para ser escravo. A escrava doméstica é a típica figura da mucama, aquela mulher dócil, negra ou branca, que está ali cuidando da família sem receber nada”, destaca a procuradora do trabalho em Pernambuco, Débora Tito.
Na avaliação da procuradora, a sociedade está despertando para o tema e estimulando o aumento das denúncias. O caso do menino Miguel, que caiu do elevador, mobilizou o Brasil. Mesmo não sendo um exemplo de trabalho doméstico, gerou repercussão e uma frente de discussões sobre as relações entre patrões e empregadas domésticas.
No dia 18 de julho deste ano, o Ministério Público do Trabalho (MPT) resgatou F. da casa da família com quem passou sua vida inteira em Caruaru. “No começo, a família não entendeu que estava fazendo algo errado, nem a trabalhadora compreendia os direitos que tinha”, diz Débora Tito.
A procuradora conta que, mais uma vez, apelou-se para a afetividade e a relação familiar na tentativa de explicar a presença de F. na casa sem direitos trabalhistas. Argumentaram que existia uma empregada na casa, registrada e recebendo os benefícios, e que isso não acontecia com F. porque era uma ‘pessoa da família’.
“Mas aí eu questionei: se ela é da família, por que nunca estudou como os dois ‘irmãos’, por que chama a dona da casa de Dona Vanda e não de mãe, como os irmãos, por que nunca teve um namorado? A ideia foi desconstruir o pensamento das pessoas, tanto dos patrões, quanto da doméstica”, afirma Débora.
As respostas que a procuradora obteve foi de que F. que não quis estudar, que não gostava de sair só, que preferia ficar em casa. O MPT fez o resgate da trabalhadora escrava e a família foi obrigada a pagar uma indenização de cerca de R$ 124 mil à vítima de 40 anos de exploração.
A mulher foi encaminhada ao Centro de Referência da Assistência Social (Cras), em Caruaru, onde recebeu atendimento e orientações. Para surpresa do MPT, no final de agosto, F. voltou para a casa dos patrões. O retorno não é proibido, mas não é o indicado.
A volta de F. para 'casa' me fez lembrar do livro Cachorro velho, da escritora cubana, Teresa Cárdenas. O livro conta a vida de um ancião, que reflete sobre sua trajetória de escravizado. Por conta da idade, sua missão é abrir e fechar a cancela da fazenda.
Um dia, o vento leva seu chapéu e, pela primeira vez, ele se atreve a atravessar para fora da porteira fazenda de café. Começa a caminhar, sem ser visto, e poderia iniciar uma fuga.
Ao invés disso, desespera-se e tenta voltar. Imagina que podem perceber seu sumiço da cancela e procurá-lo em seu quartinho, percebendo que também não está lá.
Quando finalmente consegue voltar, exausto, chora “envergonhado por aquele medo terrível de se sentir livre”.