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Matheus Nachtergaele traz sua prece íntima ao Recife

Ator cumpre temporada de duas semanas com o monólogo Processo de Conscerto do Desejo, baseado nos poemas de sua mãe que morreu quando ele tinha três meses

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 08/11/2017 às 6:15
Marcos Hermes / Divulgação
Ator cumpre temporada de duas semanas com o monólogo Processo de Conscerto do Desejo, baseado nos poemas de sua mãe que morreu quando ele tinha três meses - FOTO: Marcos Hermes / Divulgação
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O Matheus Nachtergaele que chega ao Recife, para uma temporada de duas semanas de seu Processo de Conscerto (sic) do Desejo não é o mesmo da estreia do monólogo com os poemas da mãe que se suicidou quando ele mal havia se acostumado com as luzes do mundo. Ator e espetáculo modificaram-se. “Tem mudanças, é até um pouco difícil falar sobre elas”, antecipa ele, por telefone, no Rio de Janeiro, um dia antes de embarcar para o Recife.
Se, no princípio, Matheus encampava os poemas de Maria Cecília Nachtergaele com a qual ele conviveu, fisicamente, apenas até os três meses de idade como quem ergue uma prece, hoje o ator tem plena consciência de que centrifuga uma gira. O amadurecimento em relação ao espetáculo lhe permite acionar sentimentos antes ocultados em nome da sacralidade acionada pela memória da mãe.

Se está mais humano, o ator tem, por gravitação emocional inevitável, acrescentado novas camadas à catarse testemunhada, metabolizada e (em níveis diferentes), digeridas pelas plateias por onde passa. Não há mais dissimulação: “Todo cuidado é pouco quando se vai lidar com tudo aquilo”, adverte ele, com menos receio do que lhe arranhará como um carinho às avessas por dentro. “Aos poucos, a coisa foi me liberando para juntar a raiva que a situação merece e que a gente tem da vida. A vida não é só desejo. É também a raiva que a gente tem da morte, a raiva que a gente tem de quem a gente ama e morre, e isso é muito justo, é uma raiva justa, bonita até. A peça ganhou muito nesses dois anos de carreira. Hoje, ainda é uma oração, mas agora os lados obscuros da oração estão contidos”, ele diz.

Recife foi a primeira cidade em que o monólogo foi apresentado logo após sua estreia, no intimista Teatro Poeirinha, mantido pelas sócias e atrizes Andrea Beltrão e Marieta Severo, no Rio de Janeiro. Do diminuto teatro, ele saiu direto para a grandiosidade neo-clássica do Santa Isabel. Depois daquela única apresentação pernambucana na abertura de um Janeiro de Grandes Espetáculos, ele agora volta para a temporada, sempre de quinta a sábado, no pequeno Teatro da Caixa Cultural, no Recife Antigo. “Além de o Recife ser a cidade onde estão algumas das pessoas que mais me interessam como realizadores, de ser uma cidade de gente interessada em teatro, literatura, cinema... é a cidade em que vivem algumas das pessoas que mais amo na vida”.

O intimismo da sala de menos de cem lugares o anima. “A temporada no Teatro da Caixa Cultural de Salvador, que se aparentava muito com o teatro Poeirinha onde começou, trouxe de novo à peça o tom radicalmente íntimo que tinha no começo. A peça estava mudada, amadurecida por nós. Cheguei a fazer para plateias de seiscentas, mil pessoas. A peça foi se abrindo, e agora ela voltou. Assim (em pequenas salas), ela chega no auge do que seriam as minhas intenções. Nessa coisa do ritual da confissão, de um segredo contado. Em Recife, eu saí do Poeirinha para o Santa Isabel, e agora volto para um teatro menor. Eu gosto: vai ser íntimo, vai ser bonito ver de perto essa confissão”, diz ele, lembrando que o mosaico de subjetividades emocionais adensadas pelo tempo de estrada mostrou que o grande protagonista do espetáculo não é exatamente a mãe de perda precoce.

"O espetáculo conquistou mesmo o direito à raiva, mas permanece com o desejo de mostrar que o amor é protagonista das relações humanas, a personagem não é a mamãe ou eu, o personagem é o amor. Ele está invisível, a peça existe como uma peça de amor. É uma forma de reverter o destino, amorosamente. Não temos nada juntos, mas temos uma peça. E, agora, a raiva entrou nesse processo. Eu realmente não sabia que tinha raiva disso tudo, de Cecília. Algo que fui descobrindo durante a temporada, repetindo...em certos momentos, perguntando: por que eu faço isso? Por que eu faço essa peça desgraçada. Essa raiva foi surgindo. Eu previa alguma coisa, não sabia exatamente o que seria. Eu sabia que ela ia se modificar em mim durante as giras”.

O VESTIDO

Um dos grandes animais cênicos do País – o melhor de sua geração segundo a avaliação da sempre atenta Fernanda Montenegro –, Matheus Natchergaele tem mais de duas décadas de grandes serviços prestados ao cinema, à TV e ao teatro no Brasil. Foi revelado com a corajosa e antológica montagem de O Livro de Jó, do paulistano Teatro da Vertigem. Íntimo e parceiro do cinema contemporâneo de Pernambuco, é fundamental na filmografia de Claudio Assis e protagoniza A Serpente, o mais novo longa de Jura Capela, ainda inédito nas salas locais.

Em 2015, com o convite do festival de teatro das cidades mineiras de Ouro Preto e Mariana, resolveu acariciar publicamente uma de suas cicatrizes internas. Resolveu ler os poemas deixados pela mãe, Maria Cecília, como principal e involuntária herança. “Dela, me restaram seus poemas, lindos e maduros, escritos de uma jovem mulher moderna e triste, e essa veia que me marca a testa quando rio ou choro muito.” Em cena, Matheus conduz, os poemas da mãe, agora em primeira pessoa, como num rito pessoal de possessão e homenagem, sob a companhia sonora dos acompanhado do músico Luã Belik e do violinista Henrique Rohrmann.
Em cena, usa apenas um vestido preto e os olhos pesadamente marcados de negro. “Faço a peça junto com a mamãe.

Concretamente, sou um ator que carrega 50% de seus genes, e digo seus poemas. Poderíamos dizer, quase, que Maria Cecília faz 75% do trabalho, nesse caso! ( risos ), disse ele, quando da estreia. O vestido não é aleatório. Embora nunca o tenha visto de fato, soube-se, na família, que ele teria sido encontrado como se uma carta tardia de alguém que se fora.

Como rito, a peça só acontece se estabelecida a comunhão. “Quero ir consertando meu desejo de acordo com essa emoção, dia após dia. Como na vida. Como no teatro. Temos um ator, um violão, lindos poemas e a canção. Tudo pequeno para a grandeza do essencial: artista e espectador em oração profana”, ele diz. “Eu previa alguma coisa, não sabia exatamente o que seria, eu sabia que ia forçosamente se modificar em mim durante as giras, comecei da maneira mais elegante possível, mexendo com material delicado em carne viva, com mão de cirurgião, depois com coragem. Tem uma parte aqui que tem que sangrar, e se não sangrar, não estou com a peça”.

Processo de Conscerto do Desejo – com Mateus Nachtergaele. Caixa Cultural, de 9 a 18 de novembro, de quinta a sábado, às 20h. – 3425-1915. R$ 20 e R$ 10 (meia). Vendas a partir das 10h de hoje.

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