Matheus Nachtergaele está especialmente feliz em poder trazer seu novo espetáculo de teatro ao Recife. Prestes a filmar uma adaptação de Nelson Rodrigues diridiga pelo pernambucano Jura Capela, ele confirma a filiação pernambucana em seu DNA artístico. “Em Pernambuco, ou daí, vêm a maior parte dos diretores de cinema de arte no País. Todos me interessam como artistas, e só fui dirigido por parte deles.....Estarei a postos ao chamado! Sempre!”, diz o paulistano que é considerado por Fernanda Montenegro o maior ator de sua geração.
Nos dias 8 e 9 de janeiro, Nachtergaele abre o Janeiro de Grandes Espetáculos. No palco do Santa Isabel, encena o monólogo que está fazendo subir todas as temperaturas em sua atual temporada carioca. No espetáculo Processo de Conscerto do Desejo, assim mesmo, com "sc", como a sugerir uma fusão entre concerto e conserto, Matheus dá corpo e voz aos textos e poemas escritos por Maria Cecília, sua mãe que se suicidou quando ele tinha apenas três meses de idade. Purgação pública e confessa de sua maior dor, um espetáculo do qual dificilmente se sai ileso. “A peça me coloca em paz com minha maior tristeza, pelo menos durante os 60 minutos”, diz ele, nesta entrevista ao jornalista Bruno Albertim.
JC - Matheus, esse espetáculo é um encontro, um diálogo com uma verdade muito subjetiva sua....a verdade está na realidade ou na ficção?
MATHEUS NACHTERGAELE - Bonita pergunta! A verdade está na realidade. Na dança inexprimível das moléculas e planetas. Mas a verdade subjetiva, a verdade humana, está na ficção. No poema......
JC - Você já disse que o espetáculo é uma forma de fazer a ausência da tua mãe deixar de ser um segredo neurótico para que se transforme em poema, em canção. Nesse espetáculo, dramaturgicamente falando, quem é o grande personagem: você ou sua mãe?
MATHEUS - Faço a peça junto com a mamãe. Concretamente, sou um ator que carrega 50 por% de seus genes, e digo seus poemas. Poderíamos dizer, quase, que Maria Cecília faz 75% do trabalho, nesse caso! ( risos ). Mas a grande personagem, na peça, não sou eu, nem ela. O protagonista é o AMOR.
JC - São quase 30 personagens na tua carreira. Ao analisá-los, temos a impressão de que, mesmo os mais construídos na epiderme do comportamento acionaram elementos importantes da tua personalidade. Mas, agora, a impressão é de que você está usando, de maneira mais potente, nesse espetáculo, o olho que olha pra dentro. Como se vê como matéria do teu trabalho?
MATHEUS - Acredito que um ator que seja artista usa seus personagens para depor em primeira pessoa, sempre. Independentemente do gênero, ou das características de cada papel, o que encanta, transtorna, é a vertigem pessoal do intérprete. Sempre. Em CONSCERTO DO DESEJO isso é parecido, mas não há um personagem, nem sequer um texto para teatro. Aqui, eu digo os poemas de minha mãe como se fossem meus. É sim, um espetáculo de grande exposição pessoal, no sentido mais poético
JC - Você encontrou um vestido de sua mãe...chegou a mimetizá-la no palco?
MATHEUS - Esse vestido negro, que ela havia separado para usar no meu batizado, nunca vi. Soube disso e criei um figurino baseado nesse vestido/fato. Minha mãe iria ao meu batizado vestida de luto. Isso é relevante pra mim, para a poética do espetáculo.
JC – Estamos, claro, navegando por um terreno grandemente psicanalítico: você já chegou a perceber se, de alguma forma, a ausência materna guiou ou condicionou seus comportamentos e escolhas?
MATHEUS - Claro! Faço análise desde os 16 anos de idade. São 30 anos de divã! Te digo: somos sempre fruto da nossa criação, estejam nossos pais ausentes ou presentes. A ausência dela foi apenas um dos aspectos fundamentais da minha gênese. E também a presença eterna das mães postiças......Minha madrasta tão amada, minha avó...
JC - O que mais te define e te orienta: as ausências ou presenças da tua vida?
MATHEUS - Repórter poeta! Se isso responde tua pergunta, nessa peça presentifico uma ausência. Preencho um vazio. Dou movimento à morte. Isso me orienta hoje em dia.
JC - Parece simples, mas a pergunta tem suas relevâncias: lembro, agora, da resposta que o Joaquim Pedro de Almeida deu quando lhe perguntaram porque ele fazia cinema. Dentre outras coisas, disse que filmava para chatear os imbecis... Te pergunto: por que você é ator?
MATHEUS - Para fazer sexo! (Risos) To brincando......Essa foi a maneira melhor de eu estar no mundo. Antes do Teatro (sic) entrar na minha vida, eu era um reprimido, um rapaz sério demais, e triste.....Pude falar com as pessoas através das cenas, dos personagens, e descobri a função social, cerimonial, dos atores no mundo humano.
JC - Em algum momento, você pensou em filtrar, por pudor, algo dos textos da tua mãe?
MATHEUS - Não. Digo literalmente todos os poemas que ela escreveu, na íntegra. Não há mais o que esconder.....
JC – Qual foi teu sentimento, se é que é possível descrever objetivamente, ao ter, na adolescência, a mãe de volta por meio daqueles escritos?
MATHEUS - Recebi os textos aos 16 anos, pelas mãos de meu Pai (sic). Um mundo se abriu! Pude finalmente 'ouvir' minha mãe e, ao mesmo tempo, comecei a ler poesia. As dela, e as outras todas.....Foi lindo.
JC - Você foi educado por uma avó e uma madrasta....Tua mãe, de alguma maneira, interferiu na tua subjetividade com aquelas palavras escritas?
MATHEUS - Acredito que sim. São os textos da minha formação primeira, né?
JC - Esse espetáculo te liberta?
MATHEUS - Me coloca em paz com minha maior tristeza, pelo menos durante os 60 minutos de peça!
JC - Podemos dizer, tranquilamente, que o cinema contemporâneo de Pernambuco não seria o mesmo sem a tua presença constante, um lugar onde você tem muita capilaridade. Qual a sensação ou expectativa de trazer esse espetáculo tão grandemente íntimo para um lugar em que, como uma segunda pátria, teu trabalho como ator e tuas relações pessoais tem encontrado tanta ressonância?
MATHEUS -Tenho amigos, grandes amigos, em Recife. Minha intimidade com o pessoal do cinema pernambucano, minhas idas e vindas constantes para a região (concreta e poética) de vocês me encantam! Tô muito feliz! É como mostrar a peça num lugar de muito afeto, de pertencimento......
JC - Quem você gostaria muito de ter na plateia desse espetáculo no Recife?
MATHEUS - Poxa, todos os amigos, claro, o público, claro! Mas no dia em que a Conceição Camarotti for, será especial!
JC - Da mesma forma que certos compositores compõem de uma forma específica para determinados cantores, tenho a impressão de que Cláudio Assis tensiona sua maneira de filmar de uma forma também especial quando vai dirigi-lo. Gostaria de saber como é o fluxo inverso: de que forma você articula suas forças como ator quando vai ser dirigido por Claudio Assis?
MATHEUS - Aproveito a garra libertadora do Cláudio para experimentar, para ousar. Me torno cúmplice dele no processo, e ele me dá asas: Não temos medo do erro, se é que ele existe, quando estamos filmando juntos.
JC - Há algum diretor pernambucano com quem você gostaria de trabalhar?
MATHEUS - Em Pernambuco, ou daí, vêm a maior parte dos diretores de cinema de arte no País. Cláudio, Lírio, Paulo, Kléber, Camilo, Guel, Renata, Marcos Carvalho......Todos me interessam como artistas, e só fui dirigido por parte deles.....Estarei a postos ao chamado! Sempre!
JC - Por que resolveu filmar agora com Jura Capela uma adaptação de Nelson? Como está sendo trabalhar sobre esse texto ao lado dele e de Lucélia?
MATHEUS - Amo Lucélia desde a infância, e ela me influenciou muito como artista e ser-político, na época da minha mocidade. Jura é um talento docemente selvagem. Nelson Rodrigues, um vândalo dos afetos! Tô muito animado!
JC - Quem são os artistas brasileiros que estão, como você gosta de dizer, fora da doma, e de que maneira eles te alimentam e te interessam?
MATHEUS - Não vou listar, mas sim, elogiar a todos os artistas, artesãos, médicos, engenheiros, cozinheiros, agricultores....enfim, elogiar a todos que sabem fazer do trabalho uma vocação, e que o fazem apesar das leis capitalistas. O trabalho é uma alegria. Se não é alegria, é escravidão. Parece fácil, mas nada, nada é mais difícil nessa vida do que fazer o que se gosta e acredita. Para dar nomes, diria que Kazuo Ohno, Stephen Berkoff e Denise Stoklos são influências para mim. São guias do meu caminho.
JC - Dona Fernanda Montenegro já afirmou que você é o melhor ator de sua geração. o título te interessa? Você, conscientemente, quer ser o melhor?
MATHEUS - Quero ser o melhor possível para mim e para vocês......Só isso.