CRÍTICA

Um guia para conhecer a literatura contemporânea

Inspirado no volume Por que ler os contemporâneos?, da Dublinense, JC convidou críticos para falar de alguns dos autores atuais indispensáveis

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 09/12/2014 às 8:36
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Inspirado no volume Por que ler os contemporâneos?, da Dublinense, JC convidou críticos para falar de alguns dos autores atuais indispensáveis - FOTO: NE10
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Num dos seus famosos ensaios, a escritora inglesa Virginia Woolf falava que, se dois leitores atentos emitissem opiniões sobre o poeta clássico John Keats, dificilmente discordariam da importância dele. Se o nome que surgisse na conversa fosse o de um autor atual, no entanto, a briga começaria. “É apenas quando discutem o trabalho de escritores contemporâneos que eles inevitavelmente chegam aos tapas”, descreve a autora.

Quatro editores brasileiros decidiram entrar nesse território de tapas, riscos e discórdias com o livro Por que ler os contemporâneos? - Autores que escrevem o século 21(Dublinense). Nele, Léa Masina, Daniela Langer, Rafael Bán Jacobsen e Rodrigo Rosp decidiram elencar 101 nomes fundamentais para se ficar por dentro da produção atual na literatura. Para escrever sobre ele, foram convidados 101 resenhistas.

Na apresentação da obra, Léa Medina explica que o objetivo foi revelar, em um exercício confessadamente “impressionista”, os “escritores representativos das principais tendências literárias do século 21 e que estão sendo lidos agora no Brasil”. Segundo Rodrigo Rosp, editor e também resenhista, critérios – como ter obras publicadas neste século e ser mais vinculado aos tempos atuais – foram levados em conta.

Nomes recorrentes da crítica contemporânea marcam presença, como David Foster Wallace, Paul Auster, Philip Roth, Roberto Bolaño, Herta Muller, Joyce Carol Oates e Enrique Vila-Matas. Mesmo que o foco seja internacional, há oito brasileiros presentes, incluindo o pernambucano radicado em São Paulo Marcelino Freire. Para fazer uma pequena versão local da lista, o JC convocou seis críticos literários para escreverem  sobre autores pernambucanos ou radicados aqui – cada um fez sua escolha e a explicou (confira abaixo).

Segundo Rodrigo, o ensaio da Virginia Woolf ilustra bem os problemas de fazer uma lista como esse. “A maior dificuldade é a velocidade com que nomes surgem e desaparecem, essa transitoriedade que, se existe em alguma medida no cânone, é enorme entre os contemporâneos”, comenta o organizador, também editor da Dublinense. “Acho que a leitura dos verbetes pode mostrar aspectos essenciais da literatura contemporânea, sejam de forma, sejam os temáticos. Além disso, me parece que o livro retrata a enorme diversidade que há na produção dos nossos tempos, o que é algo bastante saudável”.

Confira a lista de autores contemporâneos de Pernambuco, feita por críticos:

Fernando Monteiro, escolha de Schneider Carpeggiani
Em Aspades, Ets, ETc, primeiro romance de Fernando Monteiro, há uma passagem em que ele descreve o insólito de uma noite no aeroporto. Não que necessariamente algo estranho vá acontecer,mas que estar fora de casa é uma experiência artificial (lembre-se: viagens são violências) e imagine viver isso num lugar, por excelência, artificial, suspenso. Há algumas semanas tive de passar a noite num saguão de aeroporto e não conseguia parar de pensar nesse trecho de Monteiro, me senti um personagem seu: um homem se sentindo artificial num mundo conscientemente artificial, tão consciente que finge (mal fingido) que a realidade faz sentido. Nessa noite eu entendi um pouco melhor meu fascínio por esse escritor: toda sua literatura é um aviso que, cuidado, tudo é linguagem e que você está sendo ficcionalizado (pelo mundo, por você mesmo, pelo aeroporto...) nesse momento.

Sidney Rocha, escolha de Cristhiano Aguiar
Uma das características que mais chamam atenção a respeito da obra de Sidney Rocha é a dificuldade em classificar a sua prosa. Sua escrita, por exemplo, se encontra em muitos momentos na fronteira com o poema lírico. Conflitos sociais aparecem em muitas das suas histórias, porém não nos remetem a um realismo “naturalista” ou “pop” tão frequente em nossa ficção desde pelo menos os anos 90. Em parte, o trunfo se encontra na maneira como Rocha constrói os seus narradores, marcados por uma independência irônica em relação ao mundo narrado e à tradição literária. Seu melhor livro, O destino das metáforas, vencedor do prêmio Jabuti de contos, compila narrativas que traduzem os impasses do mundo contemporâneo através da velocidade, da poesia, do nonsense e do flerte com a literatura fantástica. Entre os contos publicados no livro citado, o destaque vai para Castilho Hernandez, o cantor e sua solidão, já um clássico do nosso conto contemporâneo.

Ângelo Monteiro, escolha de Cristiano Ramos

Segundo T.S. Eliot, a verdadeira filosofia é a melhor matéria-prima dos grandes poetas. A relação entre filosofia e poesia rendeu muitos dos mais belos e representativos textos da literatura universal, embora sejam raros os escritores talentosos, eruditos e capazes de lidar com conteúdos filosóficos. A manutenção dessa tradição depende dos pouquíssimos que não apenas ousam, mas conseguem realizar tal encontro. Quando ele se dá realmente, quando não se trata de formidável intenção sem gênio e experiência que a concretizem, é preciso não deixar despercebido. Ângelo Monteiro é desses raríssimos. Certa vez, uma repórter perguntou que livro de pernambucano ou radicado eu leria pelo resto da vida. A matéria não foi publicada. Eis que surge oportunidade de responder: Todas as coisas têm língua. E qual seria o segundo livro que eu escolheria? O recém-lançado Como virar as páginas da solidão, também de Ângelo Monteiro.

Marcelo Coutinho, escolha de Thiago Correa
Antão, o insone, de Tomé Cravan (pseudônimo do artista visual Marcelo Coutinho), é uma leitura poderosa e importante para estes dias de intolerância. Valendo-se do convívio com a família de cegos Belarmino, Coutinho mostra como a linguagem e o próprio corpo influenciam na maneira com que percebemos o mundo. Por extensão, a ideia também se estende à cultura, posições ideológicas, teorias e metodologias. O interessante é que Coutinho absorve esse discurso na própria forma da novela, que, na verdade, trata-se da sua dissertação de mestrado. Já no trabalho acadêmico, ela foi escrita como uma ficção, fazendo com que o texto sirva de metáfora e exemplo da discussão teórica que ele propõe como tema, revelando os limites da linguagem e reforçando a necessidade de observar que nossa perspectiva é apenas mais um ponto de vista.

João Paulo Parísio, escolha de Lourival Holanda
Um livro: Legião anônima. Cepe, 2014. Um autor: João Paulo Parísio. Recife, 1982. Ele já vinha publicando, no Suplemento Pernambuco, e no seu blog. Coisas de muita qualidade; e, sobretudo, de grande aceitação junto aos de sua geração. Amestrando ali a mão – que agora aparece aqui madurada nesse livro de estreia. Um modo: um autor se define muito por sua atitude com a linguagem. João Paulo Parísio já trazia, em seu modo de escrever, traços próprios – mesmo quando ainda em formação. Melhor falar aqui em outra sensibilidade literária e cuidado inventivo – que em geração. Isso o aproxima tanto de Álvaro Mutis, o mestre colombiano, quanto de Julian Fucs, mais recente: a cuidadosa arte deles parece ser eco e réplica às tantas leituras anteriores; e sobre essa base fundam a força de sua novidade. O real se alarga: a irrealidade se planta em meio do cotidiano. Legião anônima: a satisfação de um autor renovador; boa leitura assegurada.

José Rodrigues de Paiva, escolha de Anco Márcio Tenório
No ano em que a Geração 65 completa cinco décadas (2015), faz-se necessário ressaltar a poética de José Rodrigues de Paiva. Sua poesia traduz tanto o desconforto de quem tem a alma partida entre dois mundos (o Portugal que o viu nascer — mas que nele não é memória vivida e, sim, memória produzida pelas vozes dos seus poetas e as lembranças narradas dos seus familiares — e o Brasil, terra testemunhante da sua existência, mas também de um “reino mágico de menino antigo” que não existe mais) quanto o desconforto de quem não acredita em uma poesia que busque reencantar o mundo pela fé, pela correção das injustiças sociais ou por uma força épica que lhe dê unidade, e, sim, pelo silêncio contido nas palavras, nas lembranças de um tempo que é apenas vertigem de uma “voz interior que se recolhe”.

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