TROCAS

Conheça a história de estrangeiros que tentam a vida em Pernambuco

Para se livrar de dificuldades enfrentadas no país de origem, várias pessoas imigram e encontram um lar no Estado

Bianca Bion e Lucas Moraes
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Bianca Bion e Lucas Moraes
Publicado em 04/03/2018 às 9:37
Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem
Para se livrar de dificuldades enfrentadas no país de origem, várias pessoas imigram e encontram um lar no Estado - FOTO: Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem
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“Não é possível estar lá (na Venezuela), a situação é catastrófica. Nunca antes, em toda a minha vida, eu vi no meu país as pessoas comerem do lixo ou ficarem magras porque não têm comida”, afirma Mariangela Flores, 28 anos, que veio de Caracas, capital da Venezuela, para o Recife, há cerca de dois anos. Enfrentando a fome e sem perspectivas para o futuro como tecnóloga em petróleo, ela decidiu buscar melhores condições de vida em outro país. Encontrou emprego como cozinheira no restaurante Arepas y Del Caribe, em Boa Viagem, da amiga Isaura Rangel, também venezuelana. História semelhante é a do seu conterrâneo, Jhosue Tortolero, 25, que fugiu da insegurança e hoje trabalha no Recife como vendedor de livros.

Apesar de não ser o principal destino de imigrantes no Brasil, Pernambuco se tornou o lar de estrangeiros, não só de venezuelanos, que buscam superar as dificuldades em seu país e tentar uma nova vida. No ano passado, a Polícia Federal registrou 1.716 solicitações de registros temporários e permanentes no Estado, além de quatro autorizações de residência por tempo indeterminado e 38 pedidos de refúgio.

Quando Mariangela se formou como tecnóloga em petróleo, o salário e os benefícios na área já não eram os mesmos. O declínio começou, segundo ela, em 2002, quando houve forte intervenção do governo na estatal PDVSA. Então, Mariangela decidiu ir embora. Fez viagem de ônibus que durou 30 horas de Caracas até Boa Vista, em Roraima. De lá, pegou um avião para encontrar Isaura no Recife, que veio para cá com a família após o marido arranjar emprego na área de tecnologia da informação. Hoje, elas recebem notícias diárias dos parentes que ficaram lá. Escassez de comida, oscilação frequente de preços e insegurança são as principais preocupações.

Jhosue conhece bem essa situação. Ele era policial e sofria ameaças constantes à sua vida. Além disso, chegou a enfrentar situações extremas, tinha que escolher qual refeição fazer no dia. “No supermercado, tinha leitor de digital que registrava as pessoas e impedia que elas voltassem a comprar o mesmo alimento”, conta.

Aqui, eles encontraram paz, mesmo diante da crise. “A recessão que o Brasil enfrenta não tem nem comparação com o que se vive na Venezuela hoje. O restaurante que temos em Boa Viagem rende o suficiente para pagar as despesas do estabelecimento e ajudar a família. Eu e Mariangela queremos voltar um dia ao nosso país, sentimos muitas saudades de nossos familiares”, conta Isaura.

Os venezuelanos estão em segundo lugar entre os estrangeiros que pedem refúgio em Pernambuco. Os cubanos lideram o ranking, segundo a delegada do Imigrante da Polícia Federal no Estado, Luciana Martorelli. “Em terceiro lugar estão os africanos, principalmente do Senegal. Estimamos que este ano o número irá crescer em relação a 2017, porque, só em janeiro, já registramos 18 pedidos”, confirma.

Liesnel Abreu Paz, 34, é um dos cubanos que estão pedindo refúgio em Pernambuco. Inconformado com o regime ditatorial no País, ele veio para o Brasil em 2016, deixando para trás a esposa e uma filha de três anos. Chegou ao Recife com a ajuda de amigos. Demorou três meses para encontrar emprego aqui. “Consegui uma ajuda em uma boate, onde recebia entre R$ 40 e R$ 50 para trabalhar aos fins de semana”, conta. Depois, passou por uma pizzaria, onde conheceu o italiano Paolo Lacitti, 50, que lhe ofereceu emprego no seu restaurante especializado em massas, Il Pastificio, em Boa Viagem. “Graças a ele, minha família atualmente está comigo”, diz.

 

Liesnel passou por muitas dificuldades para viajar de Cuba ao Brasil. Foto: Alexandre Gondim

A empresa de Paolo emprega mais de dez pessoas. Em 2013, ele chegou ao Brasil para investir porque a Itália ainda sofria os efeitos da crise de 2008. “A imagem do Brasil mudou no exterior desde que eu cheguei aqui. O crescimento de Pernambuco, sobretudo em meados de 2010, foi grande, muito em parte de investimentos como a Refinaria Abreu e Lima. Agora, eu estou me preparando para quando a economia melhorar e estou abrindo uma fábrica para produzir as nossas massas”, diz Paolo.

Assim como o italiano, outros estrangeiros estão investindo em Pernambuco. A Jucepe afirma que 18 empresas foram constituídas por sócios estrangeiros em 2017, contra 11 em 2016, em vários segmentos, incluindo restaurantes e consultoria em tecnologia da informação.

Nem todos têm a sorte de Liesnel de trabalhar com carteira assinada e recorrem ao comércio informal. Amadour Diallo, 35, saiu da cidade de Dacar, no Senegal, em 2011 para buscar uma vida econômica mais estável no Brasil, em um momento em que o País tinha uma imagem de pujança econômica no exterior. “Saí do meu país porque o emprego era pouco e quem tinha não ganhava bem. Vim para cá e investi no comércio informal. Não tenho muita concorrência com os trabalhadores daqui, cada um vende uma coisa, mas mesmo assim a situação tem ficado difícil, meu lucro caiu 50%”, comenta. Ele afirma que muitos senegaleses foram embora da Avenida Conde da Boa Vista com o passar dos anos.

Amadou Toure ajuda os senegales a se estabelecer em Pernambuco. Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem

A explicação para isso é que eles estão vendendo os produtos no interior do Estado, em cidades como Arcoverde e Surubim. “A maioria vem porque aliciadores falam que a vida no Brasil vai melhorar. Às vezes, eles têm negócio no Senegal e vendem tudo para vir para cá. Então, quando chegam, vão criando família, vão ficando”, explica o vice-presidente da Associação dos Senegaleses em Pernambuco, Amadou Toure.

CRISE

A recessão impactou fortemente a procura dos imigrantes por Pernambuco, afirma o professor de Relações Internacionais da Faculdade Damas, Luis Emanuell. Em pesquisa realizada entre 2015 e 2016 pela faculdade, constatou-se que havia muitos imigrantes da Guiné Bissau, Angola, Senegal e China no Estado. As duas últimas nacionalidades estavam mais presentes no mercado informal no Recife. “Com a entrada do Brasil nessa recessão, notamos uma diminuição de cerca de 50% do trabalhadores informais estrangeiros no Recife, que migraram justamente pela oportunidade econômica. Os próprios brasileiros começavam a ocupar as vagas no mercado informal”, afirma o professor.

Quem também tem feito o caminho inverso e saído do Brasil são os japoneses. “Não percebo um grande fluxo migratório de japoneses aqui para o Brasil hoje. É o contrário. O Japão vem crescendo e tem conseguido se estabilizar. O pessoal tem voltado muito para trabalhar em montadoras e outros segmentos industriais. Hoje, os japoneses estão concentrados em Petrolina, na produção de uva”, afirma o dono da empresa Ovos Tamago, Kenichi Iwata, 67. Ele faz parte de uma das primeiras famílias a chegar ao Estado há 60 anos. Na época, ele tinha apenas sete anos e acompanhou a luta da família para se estabelecer aqui. "Atualmente, existem 140 famílias de japoneses em Pernambuco. Quando eu cheguei, éramos cinco famílias e fomos direto para o município de Bonito, no Agreste. Começamos plantando verdura, então, fomos crescendo. Hoje, estou no ramo da avicultura. Sou responsável pela produção de cerca de 15 mil ovos de galinha e 8 mil ovos de codorna ao mês”, conta.

A recessão que atingiu o Brasil fez com que o argentino César Pereira, 45, perdesse vários clientes. Ele é vendedor de comida argentina no Instituto Cervantes e também fornece a restaurantes empanadas, alfajor e outros produtos. “Em 2015, perdi quatro clientes. Para mim, que sou pequeno, dá muito trabalho conseguir clientes novos. A minha política de divulgação é baseada no boca a boca. Hoje, eu tenho 12 clientes. Dá para me manter, não passo fome, mas também não tem sobrado nada. Eu vivo feliz porque em Pernambuco me encontrei cozinhando”, comenta.

 

César Pereira vende comida argentina e afirma que se encontrou em Pernambuco. Foto: Alexandre Gondim

Conseguir um emprego formal é um dos obstáculos mais difíceis a serem enfrentados pelos imigrantes. Dados de levantamento feito pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, sobre a população de imigrantes venezuelanos em Roraima, no terceiro trimestre de 2017, apontam que 35,4% do total de venezuelanos consultados estão desempregados.

Se lá a situação é difícil, por aqui, entrar no mercado de trabalho também tem sido uma tarefa árdua. Mohamed Couda, 45, deixou para trás um supermercado no Egito em busca da promessa de emprego em terras brasileiras. Desde que chegou a Pernambuco, em 2016, o egípcio passou quase dois anos sem um emprego formal. Hoje, trabalha na Livraria Cultura. “É muito difícil conseguir um trabalho sendo estrangeiro. Muitas empresas parecem não gostar. No Recife, pela primeira vez vi uma empresa receber imigrantes. Aqui as pessoas ajudam”, diz ele.

Se por um lado a situação econômica não anima, a receptividade dos brasileiros, em especial dos pernambucanos, é um fator que mantém os estrangeiros aqui. “Eu não percebi tanta xenofobia por ser estrangeiro. Eu cresci num contexto que a gente não fala o que sente. Quando cheguei achava estranho até andar de mãos dadas com a minha esposa, mas consegui aprender a amar e expressar meus sentimentos aqui”, admite o angolano Jacinto Cruz, 29, que trabalha como atendente na mesma livraria.

SOLIDARIEDADE

Quando chegou ao Brasil em 2016, Mohamed Couda, 45, não imaginava que iria encontrar tantas dificuldades. Ele saiu do Egito por causa de uma namorada e deixou para trás um supermercado em busca das promessas de emprego e de uma nova oportunidade em terras brasileiras. Os entraves para conseguir se manter como um imigrante foram tantos que o egípicio chegou a dormir na rua por pelo menos três dias, antes de conseguir um emprego fixo em Pernambuco como vendedor de livros na Livraria Cultura, com a ajuda de amigos e da Cáritas brasileira, instituição ligada à igreja católica que passou a orientar refugiados e imigrantes no Estado. Ele trabalha com Jhosue e Jacinto na Livraria Cultura.

"É muito difícil, dentro do Brasil, conseguir trabalho sendo estrangeiro. Muitas empresas parecem não gostar do trabalho de quem vem de fora. Em Recife, pela primeira vez, vi uma empresa receber imigrantes. Aqui as pessoas ajudam", afirma ele. Antes de chegar à capital pernambucana, Mohamed esteve em Minas Gerais e em São Paulo. Antes da Livraria Cultura, só trabalhou por um mês e meio. Foi demitido devido à dificuldade de se comunicar em português. "No início, era um grande problema, não conseguia entender e nem ser entendido", confessa.

Desde 2010, quando os haitianos e africanos aumentaram o fluxo migratório no Nordeste, a Cáritas intensificou o acompanhamento da chegada dos estrangeiros ao Estado."A questão de imigrantes é para nós uma área de atuação. Ainda é um atendimento incipiente, não temos a mínima estrututura para receber esse pessoal. Fazemos um atendimento primário e depois os encaminhamos à prefeitura ou à Polícia Federal", afirma o secretário regional da Cáritas Brasileira, Angelo Zanré.

Ao todo, três pessoas trabalham na sede da Cáritas do Recife, no bairro da Boa Vista, Centro da cidade. "Não temos recursos específicos para atender os imigrantes. Cumprimos nossas funções em outros projetos e estendemos o braço para acolher quem chega de fora", confirma um dos membros da entidade, Wagner Cesario.

Segundo ele, o único apoio existente é o encaminhamento dos estrangeiros à Livraria Cultura, que passou a reservar parte das vagas disponíveis para quem não é brasileiro.

Recife é a cidade em que há mais imigrantes contratados na Livraria Cultura. Em todo o Brasil, a empresa já conta com 20 funcionários estrangeiros. "Cinco estrangeiros estão na equipe da Livraria Cultura no RioMar. Já trabalharam conosco uma pró-reitora de uma universidade em Cuba, pessoas com mestrado e doutorado que chegam com um sorriso no rosto em busca de qualquer oportunidade. Já ouvi gente dizer que passou a semana comendo ovo, e não tem dinheiro que pague a felicidade em ver essas mesmas pessoas podendo fazer uma feirinha no fim do mês", desabafa o gerente da loja no RioMar, Erydson Alves.

Graças à rede de apoio e solidariedade em Pernambuco, Mohamed não em voltar para o Egito. "A vida no Brasil é boa, o povo também é muito bom", justifica.

ESTUDOS

A imigração permite trocas de conhecimentos também em âmbitos cultural e científico. O Hospital da Restauração (HR), localizado no Derby, área central do Recife, é um exemplo. A unidade possui um programa de residência em neurocirurgia, do qual participam médicos de países da África e América Latina, em cooperação com a Federação Mundial de Sociedades de Neurocirurgia (ou WFNS, na sigla em inglês) e a Secretaria de Saúde do Estado. O objetivo é que eles retornem depois a seus países de origem para aplicar os conhecimentos que obtiveram na capital pernambucana.

Hoje, há 26 médicos participantes do programa, sendo oito estrangeiros. Em dez anos, cinco especializandos de outros países já estão formados. Em 2017, o HR realizou uma média de 3.069 neurocirurgias. Os médicos recebem uma bolsa para se manter aqui por cinco anos e trabalham das 7h às 17h.

“O programa existe há dez anos no Hospital da Restauração. A ideia já existe na WFNS de ter um projeto de ensino para países africanos e da América Latina, onde a formação do neurocirurgião é difícil, não há muitas opções”, afirma o neurocirurgião Geraldo de Sá Carneiro, um dos preceptores do programa e coordenador de cirurgia da coluna vertebral do HR. O chefe do serviço de neurocirurgia e hoje presidente honorário da WFNS, Hildo Azevedo, foi quem trouxe o projeto para o hospital.

A República Democrática do Congo, o segundo maior país do continente africano, com 80 milhões de habitantes, só tem dois neurocirurgiões. É de lá que vem o médico Benjamin Kahozi, 29 anos. “A carência de neurocirurgiões é marcante, devido ao tamanho da população. Só temos dois neurocirurgiões, que não conseguem atender à demanda. A maior parte dos casos temos que encaminhar para a África do Sul e a Bélgica”, comenta.

A formação se subdivide em áreas específicas, basicamente em atendimento neurológico e de trauma. A médica Ana Cristina Veiga, 30, é de Cabo Verde e afirma que a experiência é boa para os dois lados. “O programa fortalece o hospital porque ele se internacionaliza, traz experiências diferentes, como também ajuda os outros países em termos de desenvolvimento e quadros qualificados. Dessa forma, promove-se acessibilidade”, explica.

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