Voz do Leitor

Dandismo e modernidade

Reflexão sobre o fenômeno do dandismo e o tempo de decrepitude

Richard Romeiro
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Richard Romeiro
Publicado em 03/05/2011 às 22:00
Foto: Guga Matos/JC Imagem
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Não obstante o que apregoam com brutal ingenuidade os apologistas do progresso histórico, os entusiastas do mundo moderno e de suas benesses, os epígonos das Luzes que vaticinam a marcha inexorável da humanidade em direção a uma sociedade cada vez melhor e mais racional, vivemos em um tempo de decrepitude e débâcle, em uma era de esboroamento e corrosão generalizados – sobretudo naquilo que diz respeito ao que é mais elevado, nobre e, portanto, mais essencial para o homem. Há, por certo, um desenvolvimento sem precedentes das condições do bem-estar humano, um aumento extraordinário dos recursos materiais responsáveis pela nossa felicidade mundana ou bonheur, engendrado pelo avanço vertiginoso da técnica e do conhecimento científico nos tempos atuais.

Mas – é preciso notar –, esse mero desenvolvimento técnico e material, promovido pelo triunfo histórico da ciência, não pode ser tomado como um índice suficiente do aperfeiçoamento humano. Há, sem dúvida, mais prosperidade e riquezas na Terra; vivemos mais e com mais conforto e comodidades; a democracia e o capitalismo se espraiam irresistivelmente pelos mais distantes rincões do planeta. No entanto, um olhar mais arguto perceberá que o homem que emerge dessa civilização materialmente triunfante, tecnológica, capitalista e democrática, é um curioso e peculiar animal: um animal dócil e pacato, preso ao círculo férreo do trabalho e do consumo, alheio a qualquer paixão ou aspiração que transcenda as fronteiras estreitas do seu bem-estar privado e de sua felicidade bovina, um animal burguês, em suma, que Nietzsche qualificou como o “último homem”, o homem dos tempos do niilismo.

Nesse contexto moderno e niilista, em que o sentido da existência humana foi mais e mais restringido à consecução de metas puramente materiais e em que viceja com extremo vigor, sob o nome de progresso democrático, o mais crasso e vulgar igualitarismo, suprimindo as antigas hierarquias de valor e as exigências  éticas e espirituais superiores, o páthos de nobreza com suas correspondentes manifestações torna-se, evidentemente, algo cada vez mais raro e insólito.

Um caso típico, nesse sentido, é representado pelo fenômeno do dandismo. Como bem viu Baudelaire, em O pintor da vida moderna, o dandismo é um evento característico das civilizações decadentes, isto é, das civilizações assoladas pela patologia igualitária e que, confundindo todos os valores e estilos, perderam paulatinamente seus referenciais de nobreza, como é o caso, para o poeta, da civilização democrática moderna. “O dandismo”, proclama o poeta nesse sentido, “é o último rasgo de heroísmo nas decadências”.

Nessa linha de reflexão, entende-se, pois, que o dândi é aquele que, em meio a uma cultura que soçobra e que se perde na confusão igualitária, no nivelamento dos estilos e dos valores, busca resguardar em seu comportamento individual uma certa elegância aristocrática, associada intimamente ao amor pela diferença e às aspirações por uma vida refinada, à parte e superior. Trata-se, decerto, de um esteta, mas de um esteta que busca uma estilização total de sua existência: não apenas no que diz respeito ao vestuário, à higiene e à toilette, mas também no que diz respeito ao espírito e ao gosto moral e artístico.

Nas palavras de Baudelaire, na obra acima referida, “o dandismo não é nem mesmo, como muitas pessoas pouco sensatas parecem acreditar, um gosto imoderado pela toalete e pela elegância material. Essas coisas não são, para o dândi, senão um símbolo da superioridade aristocrática de seu espírito. Assim, a seus olhos, obcecado acima de tudo, por distinção, a perfeição da toalete está na simplicidade absoluta, que é, de fato, a melhor maneira de se distinguir. Que é, pois, essa paixão que, transformada em doutrina, fez adeptos poderosos, essa instituição não escrita que formou uma casta tão altiva? É, antes de tudo, a necessidade ardente de se prover, dentro dos limites exteriores das conveniências, de uma certa originalidade”.

Atentos a essas considerações, constatamos que o dandismo envolve, assim, segundo o poeta, um visceral páthos pela diferença, o qual, para se consumar, exige uma certa ascese espiritual,  entendida fundamentalmente como um exercício severo e rigoroso de cultivo de si, visando à neutralização da vulgaridade externa e circundante.  O dandismo, nessa perspectiva, se aproxima, portanto, de uma espécie de estoicismo, um estoicismo aristocrático e estetizante, que, pelo cultivo de si, triunfa do hedonismo vulgar e alcança a mais perfeita impassibilidade interior.

Diz-nos explicitamente Baudelaire: “o dandismo é uma espécie de culto de si mesmo, que pode sobreviver à procura da felicidade a ser encontrada em outrem, na mulher, por exemplo; que pode sobreviver até mesmo àquilo que se chama ilusão. É o prazer de surpreender e a satisfação orgulhosa de jamais se surpreender. Um dândi pode ser um homem que aparenta indiferença, talvez um homem que sofra; mas, nesse último caso, sorrirá, tal como fez o lacedemônio enquanto era roído pela raposa. Vê-se, pois, que, sob certos aspectos, o dandismo confina com o espiritualismo e o estoicismo”.

No avançado estado de modernização (e de decomposição cultural) em que nos encontramos hoje, em que a barbárie igualitária se alastra como um cancro incontrolável, solapando insanamente todo e qualquer vestígio de nobreza e promovendo a vitória da animalidade mais baixa, não é difícil perceber que as condições para o florescimento desse raro espécime humano se tornaram cada vez mais problemáticas. Estaríamos testemunhando o eclipse definitivo do heroísmo e da possibilidade do homem superior?
 
* Richard Romeiro é filósofo, doutor em filosofia política e professor universitário.

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