Centenário: Jornal do Commercio

O risco de desvalorizar a pessoa em prestígio da “coletividade”

Advogado alerta que a sociedade que já pende para uma coletivização utilitarista. A dignidade da pessoa dá lugar à conveniência de grupos

RONNIE DUARTE
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RONNIE DUARTE
Publicado em 03/04/2019 às 0:40
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Advogado alerta que a sociedade que já pende para uma coletivização utilitarista. A dignidade da pessoa dá lugar à conveniência de grupos - FOTO: Foto: JC Imagem
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Recentes manifestações sugerem um movimento de ressignificação do indivíduo na sociedade. Percebe-se um crescente movimento de desvalorização da pessoa em prestígio da “coletividade”. Bole-se, assim, com um valor cardeal, incutido há muito na civilização ocidental: a dignidade de cada um de nós e a proteção do núcleo de determinados direitos que nos são indeclináveis.

Exemplifico: imagine um universo de dez pessoas suspeitas de cometer um delito grave. E que, dentre elas, há nove criminosos e um único seguramente inculpado. Suponha, ainda, não ser possível a identificação singular do inocente. Você admitiria que todos os dez fossem presos a fim de evitar a impunidade dos nove delinquentes? Muitos dirão que sim. Estamos em guerra, falarão alguns, complementando que a luta contra a criminalidade exige sacrifícios e que “danos colaterais” são inevitáveis em ambientes conflagrados. É uma corrente que ganha adeptos a cada dia, pelo menos até que os nocivos efeitos atinjam o círculo familiar dos novidadeiros.

Dias atrás ouvi de um jovem médico a defesa da “otimização” dos recursos investidos na saúde pública. Dizia ele que muitos morrem por falta de atendimento básico, aludindo à indisponibilidade de incontáveis medicamentos de baixíssimo custo. Pontuava, em acréscimo, que fortunas são investidas em atendimentos com reduzida probabilidade de êxito, como ocorre no caso dos cuidados oncológicos paliativos. Ante a insuficiência presente dos meios materiais, para ele, o segundo grupo deveria ficar sem tratamento, o que significa morrer em agonia.

Finalmente, lembro do que ouvi de um festejado jurista carioca no último mês: que garantias constitucionais do processo podem ser mitigadas pelo juiz, sem previsão legal, tendo em mira a eficiência na prestação jurisdicional. A eficiência como escusa mitigatória de direitos processuais fundamentais. E esse parece ser o norte. A cada dia exige-se dos magistrados que sejam mais gestores e menos juízes. A produtividade virou a principal régua para a atividade judicante. A Justiça Instituição secundariza a justiça enquanto valor. Amostrar estatísticas já parece importar mais do que dar efetivamente às pessoas “o que é seu” por direito.

Em três ambientes distintos, arrosta-se uma desumanização. Assalta-nos o câmbio incipiente nos valores de uma sociedade que já pende para uma coletivização utilitarista. A dignidade da pessoa dá lugar, pragmaticamente, à conveniência dos grupos.
Curiosamente, a sobrevalorização da coletividade em detrimento do indivíduo, recorrente nos regimes com viés socialista, recebe achegas quando o pêndulo da política pende para a direita liberal. Digo isso porque importantes marcos históricos na proclamação de direitos foram escritos na sequência de revoluções liberais, tais como a Bill of Rights e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. E são esses mesmos direitos que são agora esbatidos pelo pendor coletivizante.

A cada dia exige-se dos magistrados que sejam mais gestores e menos juízes. A produtividade virou a principal régua para a atividade judicante.


Por proposta dos liberais, viu-se um maior vigor na limitação na liberdade do Estado. Salvaguardas foram estabelecidas em favor do indivíduo. Desde então, garantias como o devido processo legal, a presunção de inocência, o direito à informação, a liberdade de opinião, a proteção da intimidade passaram a ganhar maiores atenções. Eram expressões concretas do reconhecimento da concepção kantiana da dignidade da pessoa. Por intermédio delas, outorgou-se a cada indivíduo, singularmente, especial proteção enquanto ser único e irrepetível.

Vale lembrar que é precisamente o respeito aos direitos fundamentais que qualifica um Estado de Direito, fazendo-o Democrático. “Estado de Direito” é qualquer um que esteja submetido ao império do Direito. Democrático, só aquele que situa a dignidade da pessoa humana como valor fundante.

A nossa democracia segue desafiada a resistir ao reducionismo que ameaça a perversão de princípios que sempre nos foram caros. A missão será assegurar a centralidade valorativa da dignidade humana: de qualquer e de cada pessoa, e apenas por ser pessoa. Estão à prova os nossos alicerces democráticos, encravados na moral cristã. Não podemos descurar que a pessoa é um fim e não um meio para a consecução de quaisquer objetivos (ainda que legítimos) por parte do Estado.
Divisa-se em nosso horizonte a hercúlea tarefa de não permitir que, sob a escusa da defesa dos interesses de uma coletividade sem rosto, acabemos coisificados.

* Ronnie Duarte é advogado e foi presidente da OAB-PE

 

Confira o especial completo sobre centenário do Jornal do Commercio no link abaixo:

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