Não fosse por Bolsonaro, investido no cargo de Presidente da República Federativa do Brasil, estar em cima de um carro, tossindo e dizendo frases calculadas para dançarem no limiar entre a política e o crime, as manifestações do domingo em frente aos comandos das Forças Armadas pelo Brasil afora teriam só o tamanho diminuto que seus poucos participantes lhe conferiram. Seriam apenas o que são: uma reunião bizarra de culto à ignorância com propósitos equivocados. Bolsonaro estar ali é o problema. Ou melhor, Bolsonaro estar ali, enquanto presidente, é o problema. Porque, pessoalmente, ele pode ser facilmente identificado neste grupo. O problema é uma pessoa tão identificada com esse grupo estar presidente.
Bolsonaro dorme dentro do Palácio da Alvorada, mesmo cercado de toda a segurança, com uma arma ao lado da cama. Quando era vereador, no RJ, os colegas contam que ele era motivo de piada, porque sempre olhava debaixo do próprio carro antes de entrar no veículo, na saída das sessões, desconfiado que alguém poderia colocar uma bomba para matá-lo. Ele desconfia de tudo e de todos ao redor e aprendeu que a melhor forma de descobrir onde estão escondidos os inimigos é confrontando todos e observando quem o apoia e quem não está com ele. É uma tática de guerra: tentar mostra-se vulnerável, parecer que cometeu um erro, para que o inimigo apareça acreditando que irá vencer. Nada original, nem fruto de grande genialidade. Mas bastante funcional, quando seu contingente é reduzido.
O contigente de Bolsonaro está reduzido. Ele perdeu popularidade nos últimos meses. Não tanto quanto seus inimigos gostariam, mas está fragilizado em número. O domínio sobre as redes sociais foi atacado com a CPI das Fake News no Congresso. Muitos internautas perceberam que a movimentação de robôs que defendiam o presidente e atacavam seus adversários caiu muito após a descoberta de que várias dessas contas estavam registradas em computadores da própria Câmara, ligados ao gabinete do filho dele, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL). Depois disso veio o coronavírus e, pressionado por empresários aliados, foi obrigado a colocar-se numa posição de negação que lhe custou ainda mais popularidade.
A tática de obrigar o inimigo a se descortinar está em curso por causa disso. Bolsonaro entende que precisa reavivar a onda que lhe garantiu a eleição em 2018, o ódio a tal “velha política” e ao lulopetismo. Não existe salvador sem perigo, não existe herói sem vilão. Por isso no mesmo dia em que finalmente conseguiu demitir Luiz Henrique Mandetta (DEM) do Ministério da Saúde, Bolsonaro imediatamente apontou seu arsenal de verborragia para Rodrigo Maia (DEM). O presidente em sua ansiedade doentia e sua necessidade de controlar o ambiente para saber quem é seu amigo e quem não é, busca uma confirmação definitiva para poder seguir.
Ele sabe que se um processo de Impeachment for iniciado ou mesmo for cogitado, aos poucos, todos serão obrigados a se pronunciar e se posicionar. Para os inimigos que se disfarçam entre as árvores, não haverá onde se esconder. Por isso ele provoca, para que as opiniões favoráveis ou contrárias possam ir surgindo. É como um caçador que, angustiado por não encontrar seu alvo no meio da floresta, resolve colocar fogo nela, mesmo se arriscando a morrer junto no incêndio. Como alguém que dorme com uma pistola na cabeceira da cama e quer ter ao menos uma noite de sono mais tranquila sabendo quem não deve se aproximar.
Isso inclui os militares. O que se sabe com certeza é que a cúpula das Forças Armadas não está disposta a nenhuma aventura fora da Constituição. A pergunta que Bolsonaro se faz e não pode dirigir diretamente aos oficiais sem ser perigosamente interpretado é: qual a margem de segurança disso? Todos os militares pensam assim ou há divisões internas? E as polícias militares nos Estados, quantos o seguiriam e quantos seguiriam obedecendo a ordem dos seus governadores? Quais ministros estão dispostos a ir com ele até as últimas consequências. Houve quem defendesse por mais de uma vez que se Sérgio Moro quiser salvar a própria biografia teria que já ter pedido demissão. Em que momento ele o fará? Ele o fará? E os outros ministros, aguentam até onde?
Botar fogo na floresta pode matá-lo, mas ele precisa saber disso, ou em pouco tempo nem a pistola vai conseguir fazê-lo dormir.
Essas perguntas parecem absurdas? Elas são, considerando um Estado de Direito, num ambiente de respeito constitucional. Mas, as pessoas que se manifestavam pedindo AI-5 e intervenção militar estão numa realidade que ignora esses pressupostos ou não têm a menor ideia do que estão pedindo. E Bolsonaro estava lá.
Bolsonaro não quer fazer inimigos, mas ele quer conhecer todos eles. Suas atitudes para descobri-los são tão pouco sutis que fica difícil saber quais inimigos ele já tinha e quais criou pelo caminho. Ele não vai parar de esticar a corda. Quanto mais ele estica, mais seus críticos pressionam o Congresso e o STF e mais perto eles ficam de tomar uma atitude mais drástica.
No domingo, após o discurso de Bolsonaro, Rodrigo Maia (DEM), Davi Alcolumbre (DEM) e o STF foram criticados por só publicarem notas de repúdio e não fazerem mais nada. O público quer uma união em torno de um pedido de Impeachment contra o presidente.
Quatro fatores são muito importantes para que um processo de impeachment vingue e afaste o presidente: vontade e força no Congresso, apoio do STF, garantia de não intromissão das Forças Armadas e pressão popular nas ruas. Até agora, somente os dois primeiros ítens estão presentes com alguma segurança. O terceiro é um enigma e o quarto está pela metade, porque até existe uma massa disposta a apoiar o impeachment, mas ela não pode ir à rua nesse período de isolamento. E só panelaços não geram a imagem necessária para os livros de História.
Bolsonaro já fez essa conta e, por isso, estica a corda e provoca, aguardando que alguém caia na armadilha. É bom que não caiam.
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