Putin se sente tão poderoso que não hesita em criticar até mesmo Lenin, o fundador da Rússia socialista
O gesto de Putin em relação a Ucrânia equivaleria a Xi Jinping, da China, criticar Mao por ter aceitado o funcionamento de Hong Kong pelo Reino Unido
No meio de debates que se seguiu ao reconhecimento das autodeclaradas Repúblicas Populares de Donetsk (RPD) e de Luhansk (RPL) (ambas em território ucraniano) pelo Conselho da Federação, a Câmara alta do Parlamento da Rússia, um parágrafo do presidente Vladimir Putin chamou a atenção internacional quando ele se referiu de forma contestatória ao líder da revolução socialista de 1917, Vladimir Ilyich Lenin.
Putin disse que a Ucrânia moderna foi inteiramente criada pela Rússia, “mais precisamente, pela Rússia bolchevique, comunista. Esse processo começou imediatamente após a revolução de 1917. Como resultado da política bolchevique, emergiu a Ucrânia soviética, que ainda hoje pode, com razão, ser chamada de ‘Ucrânia de Vladimir Ilyich Lênin’. Ele é seu autor e arquiteto”.
Putin foi mais longe: “Isso é totalmente confirmado por documentos de arquivo. E agora descendentes gratos têm demolido monumentos dedicados a Lenin na Ucrânia. Isso é o que eles chamam de descomunização. Querem descomunização? Bem, isso nos serve. Mas é desnecessário, como dizem, ficar só na metade do caminho. Estamos prontos para mostrar a vocês o que a descomunização real significa para a Ucrânia.”
Foi a primeira vez que um líder russo se referiu de forma tão dura contra aquele que é considerado o grande arquiteto não da Ucrânia, mas da própria Rússia. E ao que se saiba nenhum dos lideres da revolução de 1917 criticou Lênin de forma tão desrespeitosa. Mas Putin - mais de 100 anos depois e se sentindo bastante fortalecido - o fez.
Isso não quer dizer que ao longo da história Vladimir Ilyich Lênin não tenha sido criticado. Após a revolução socialista vários lideres entre eles Leon Trotsky pagaram com a vida. Centenas de companheiros de Lênin também sofreram com expurgos. Mas com sua morte Lênin vem sendo preservado como, aliás, é o seu corpo no mausoléu que o governo russo construiu para ele e por onde passam todos os anos milhões de russos e visitantes internacionais.
Mas o gesto de Putin na critica a Lênin veio com uma injustiça histórica. O líder supremo russo, de fato, tentou impor um governo soviético sobre o povo da Ucrânia, o qual, apenas um mês antes, em janeiro, havia declarado sua independência. E no início, o objetivo de Lênin pareceu se concretizar.
A questão é que os camaradas que ajudaram a derrubar o czar russo não queriam ser governados por outro regime de força. E embora o povo ucraniano tenha, ao final de 1918, conseguido restabelece a república Lênin tentou incorporar a Ucrânia ao sistema soviético de qualquer jeito mirando o solo mais fértil da de onde ainda hoje sai 70% do trigo do mundo.
Os russos continuaram tentando impor um governo na Ucrânia e pela terceira e última vez em 1920 desistiram, mas não antes de explodir um grande ressentimento. Portanto, a critica de Putin a Lênin tem um pouco dessa frustração soviética.
Entretanto, ao longo dos anos esse sentimento de rejeição Rússia só fez crescer. Hoje existe uma expressão, Holodomor, um palavra ucraniana que quer dizer “deixar morrer de fome”, “morrer de inanição” referente a um ato de a Rússia contra a Ucrânia.
Ele se refere a morte por fome de milhões de ucranianos entre os anos de 1931 e 1933 decorrente das políticas econômicas que Joseph Stalin passou a empregar logo que assumiu o poder, em 1928
Grosso modo, o termo holodomor, assim como o holocausto nazista contra os judeus, consistiu em um genocídio contra a população da Ucrânia empreendido pelo comunismo soviético, que era liderado por Stalin.e que consistia em controlar a produção de cereais dos países da União Soviética por meio da “requisição compulsória”,
Mais uma vez a Ucrânia foi o país da URSS que mais demonstrou resistência a tais medidas. A autonomia cultural ucraniana e sua forte identidade nacional tornavam-na intolerável aos anseios dos soviéticos russos.
A insurreição dos camponeses ucranianos contra as medidas de coletivização forçada e requisição compulsória de cereais determinadas pelo ditador Joseph Stalin para impingir medidas ainda mais drásticas do que aquelas que foram executadas em outras regiões. Entre 1931 e 1933, o número de mortos era tão grande que os cadáveres se espalhavam pelas ruas e pelos campos.
O tempo passou e durante a II Guerra os ucranianos tiveram mais problemas com os camaradas de Moscou que já eles muito ajudaram na reconstrução do país após ele ser bombardeado pelas trocas aéreas de Hitler.
Para completar, quando veio a explosão da usina nuclear de Chernobyl quando para os ucranianos, os russos também não foram solidários.
No século XX, os protestos em Kiev contra o governo de Viktor Yanukovich com manifestantes derrubando estátuas de Lênin mostravam um pouco disso.
Foi um jeito de demonstrar raiva: as estátuas funcionavam como símbolo da opressão soviética, e a impressão que se tem da Rússia. E ao ver isso Vladimir Putin não se pronunciou fortemente conta o gesto
Isso pode explicar porque agora no meio da crise contra a Ucrânia que quer entrar para a OTAN, ele aproveitou a crise para atacar ninguém menos que o fundador da Rússia socialista.
O ato da Rússia reconhecendo a independência das regiões controladas pelos rebeldes dentro das fronteiras que os separatistas proclamaram originalmente quando se separaram da Ucrânia em 2014 faz parte da estratégia de Putin de se consolidar como um grande líder mundial.
E a declaração da Rússia pode levar a tentativas de expandir a região separatista pela força sendo essa a primeira vez que a Rússia diz que não considera Donbass como parte da Ucrânia.
De qualquer forma parece claro que Putin deseja reescrever a historia e está tão determinado nisso que não teve problemas em criticar ninguém menos Vladimir Ilyich Lênin. Uma figura que está para a Rússia assim como Mao Tsé Tung está para a China.
De certa forma o gesto de Putin em relação a Ucrânia equivaleria a Xi Jinping criticar Mao por ter aceitado o funcionamento de Hong Kong pelo Reino Unido e que só retornou a colônia de à China em 1º de julho de 1997.