COLUNA MOBILIDADE

Mutilados: as vítimas mais sofridas do trânsito

O JC inicia uma série de reportagens para falar, não dos mortos, mas dos sobreviventes do trânsito. Os milhares de brasileiros que ficam com sequelas permanentes devido a sinistros de trânsito. Pessoas que travam lutas pessoais para reaprender a viver, enquanto geram um alto custo ao País

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Roberta Soares

Publicado em 24/07/2022 às 8:30 | Atualizado em 24/07/2022 às 11:28
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Falar da violência no trânsito é falar dos mortos que ele produz diariamente. As vítimas mortas nas ruas, avenidas e rodovias do Brasil e do mundo são sempre citadas e lembradas - e com razão, afinal, são pelo menos 32 mil por ano no País, e 1,5 milhão mundialmente. Já foram mais, muito mais, vale ressaltar.

Mas, dessa vez, queremos falar dos sobreviventes. Das pessoas que sofreram sinistros de trânsito (não se define mais como acidente, segundo a ABNT) e não morreram. Mas que se feriram, sobreviveram e travam guerras diárias para recomeçar. Que lutaram e lutam para sobreviver com sequelas profundas e permanentes.

Por eles e para alertar a sociedade sobre os danos de um trânsito sem limites, fiscalização, controle e educação, o JC inicia a série de reportagens Mutilados - As verdadeiras vítimas do trânsito. Para trazer à luz uma das consequências mais perversas do trânsito brasileiro: as centenas de vítimas sequeladas permanentemente.

São, em média, 200 mil sequelados por ano no Brasil. Em 2019, segundo o IBGE, foram 579 mil pessoas com sequelas físicas permanentes provocadas por sinistros de trânsito.

Todas, vítimas de sequelas evitáveis, que poderiam não ter acontecido. Pessoas que sofrem, fazem suas famílias sofrerem junto e que ainda geram um alto custo para a saúde e a previdência social públicas.

ARTES/JC
Selo da série Mutilados - As verdadeiras vítimas do trânsito - ARTES/JC

A grande maioria, são jovens condutores e passageiros de motocicletas.

No primeiro dia da série, o olhar é sobre elas, as vítimas. Que as histórias de dor, revolta e superação - sim, muita superação - ajudem o País a se voltar mais para a segurança viária, a educação de motoristas e o estímulo a uma sociedade menos motorizada e mais consciente ao volante.

Na sequência, o impacto social e econômico que os mutilados geram para o País.

LÉO MOTTA/JC IMAGEM
Série de reportagens Mutilados - as verdadeiras vítimas do trânsito discute o drama e o custo social das centenas de inválidos provocados pelo trânsito - LÉO MOTTA/JC IMAGEM
GUGA MATOS/JC IMAGEM
A 120 km/h numa motocicleta, capacete no braço, sem sapato (na verdade, uma sandália de dedo), forçou a ultrapassagem de um caminhão e se chocou contra uma outra moto que transportava gás de cozinha. Foi um milagre estar vivo para contar a história - GUGA MATOS/JC IMAGEM
GUGA MATOS/JC IMAGEM
Série de reportagens Mutilados - as verdadeiras vítimas do trânsito discute o drama e o custo social das centenas de inválidos provocados pelo trânsito - GUGA MATOS/JC IMAGEM

CONHEÇA AS HISTÓRIAS DE RESILIÊNCIA E SUPERAÇÃO DOS MUTILADOS

O álcool ao volante, sempre ele

Carlos Henrique, 33 anos, é uma lição de vida. E das grandes. Perdeu toda a perna esquerda aos 22 anos, por culpa de um motorista de carro que estaria alcoolizado. Comenta-se - nada é oficial porque ele nunca quis saber - que esse homem, apesar de ter fugido sem prestar socorro, entrou em depressão e viu sua vida piorar sensivelmente após aquele dia (23/7/2011).

3,9
milhões de pessoas sofreram algum sinistro de trânsito com lesão no Brasil em 2019, segundo o IBGE

60,6%
desse total receberam algum tipo de assistência de saúde

14,9%
ou 579 mil pessoas tiveram sequelas físicas permanentes em decorrência do sinistro

63,3%
eram homens e 36,7% mulheres

Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta pela Avenida Segunda Perimetral, em Olinda, na Região Metropolitana do Recife, quando o motorista teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço.

“O motorista estava totalmente alcoolizado, pegou a contramão, invadiu a minha faixa. A impressão que tenho é que ele nem me viu. Era noite. Me pegou de lado. O impacto foi na perna e braço esquerdos. Tive fraturas expostas nos dois. Era um sábado à noite e a prestação de socorro demorou demais”, relembra Carlos Henrique, que não bebia nem bebe.

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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM

Foram três horas até chegar ao hospital e ir direto para a sala de cirurgia já com o prognóstico de amputação da perna. E a possibilidade de amputar o braço também. Por pouco não o perdeu, embora siga sem movimento no membro.

“Cheguei a ficar com parte da coxa, o que chamam de coto (parte do membro que permanece após a cirurgia de amputação), mas depois tive que tirar tudo, a chamada desarticulação de quadril”, relembra. Foram 21 dias na UTI e mais dois meses no hospital.

Só com a reabilitação imediata, foram outros seis meses. No geral, um ano e dois meses. “Imediata porque viver sem uma perna e o movimento de um dos braços é uma eterna reabilitação”, ensina.

 

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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Mutilados pelo trânsito - Personagem - Educador da Lei Seca Carlos Henrique de 33 anos que perdeu a perna esquerda e partes do movimento do braço esquerdo em um acidente de trânsito - Violência no Trânsito - Vítima Acidente - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM

A revolta, entretanto, nunca fez parte da vida de Carlos Henrique. A religião, a fé, o fizeram aguentar e, depois, aceitar. “Nunca me revoltei. Entendi que era para acontecer comigo. Minhas convicções me ajudaram a vencer as dificuldades. Como cristão protestante, sabia que foi algo que Deus permitiu que acontecesse porque havia um propósito”, argumenta.

“Tive muito medo de perder meu braço. Muito. Mas não perdi. Também tive muito suporte da minha família: pais, irmãos e minha noiva, que hoje é minha esposa. Amigos também. Isso é o que nos ajuda”, ensina.

Carlos perdeu a mobilidade do cotovelo e não tem força na mão esquerda. Consegue apenas mexer os dedos. E sofre com o uso da prótese, que no caso dele é uma de articulação do quadril, mais complicada.

“Fica na altura do abdômen. Você não pode emagrecer ou engordar. Qualquer mudança impede o uso. Usei a cadeira de rodas por muito tempo e hoje prefiro a muleta, porque me dá mais mobilidade”, conta.

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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Carlos Henrique Maciel da Silva voltava para casa em sua motocicleta, quando um motorista alcoolizado teria invadido a pista contrária e praticamente arrastado o lado esquerdo do jovem, que por pouco não perdeu também o braço - GUGA MATOS/JC IMAGEM

LIÇÃO DE VIDA

Poucos meses depois do sinistro de trânsito, Carlos Henrique foi convidado a ser um dos educadores da Operação Lei Seca em Pernambuco. Passou a integrar a pequena equipe que leva suas experiências traumáticas como vítimas do trânsito para motoristas abordados nas blitzes da Lei Seca.

Também pratica atividades paraolímpicas na UFPE.

Quer ajudar Carlos Henrique?
Oportunidades podem ser ofertadas a Carlos Henrique. Contato: (81) 98600.3645 (WhatsApp)


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A 120 km/h numa motocicleta, capacete no braço, sem sapato (na verdade, uma sandália de dedo), forçou a ultrapassagem de um caminhão e se chocou contra uma outra moto que transportava gás de cozinha. Foi um milagre estar vivo para contar a história - GUGA MATOS/JC IMAGEM

A velocidade fazendo mais e mais vítimas

Gleybson, em 2017 com 20 anos, ultrapassou todos os limites no trânsito. Pagou para ver, literalmente, hoje reconhece. Tem plena consciência do quanto foi imprudente na motocicleta. E paga por isso. E pagará por muito tempo, provavelmente pela vida inteira.

A 120 km/h numa motocicleta, capacete no braço, sem sapato (na verdade, uma sandália de dedo), forçou a ultrapassagem de um caminhão na PE-35, entre Itapissuma e Igarassu, na área norte da Região Metropolitana do Recife, e se chocou contra uma outra moto que transportava gás de cozinha. Foi um milagre estar vivo para contar a história.

Gleybson teve dupla hemiparesia espástica com amputação (paralisia cerebral de um lado do corpo). Passou quatro meses em coma e mais seis meses no Hospital da Restauração, na área central do Recife. Sem capacete e lançado a uma distância de dez metros com a colisão, perdeu parte do crânio.

Cinco anos depois, ainda aguarda uma cirurgia plástica para o preenchimento da área - que o ajudará na reabilitação, mas também esteticamente. O afundamento de parte do crânio é algo que incomoda a qualquer um, ainda mais a um jovem de vinte e poucos anos.

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Gleybson, em 2017 com 20 anos, ultrapassou todos os limites no trânsito - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Gleybson, em 2017 com 20 anos, ultrapassou todos os limites no trânsito - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Gleybson, em 2017 com 20 anos, ultrapassou todos os limites no trânsito - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Gleybson, em 2017 com 20 anos, ultrapassou todos os limites no trânsito - GUGA MATOS/JC IMAGEM
FOTOS: GUGA MATOS/JC IMAGEM
Gleybson, em 2017 com 20 anos, ultrapassou todos os limites no trânsito - FOTOS: GUGA MATOS/JC IMAGEM
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A 120 km/h numa motocicleta, capacete no braço, sem sapato (na verdade, uma sandália de dedo), forçou a ultrapassagem de um caminhão e se chocou contra uma outra moto que transportava gás de cozinha. Foi um milagre estar vivo para contar a história - GUGA MATOS/JC IMAGEM

Gleybson também quebrou o maxilar em dois lugares e, entre as muitas cirurgias a que foi submetido, sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral), que o teria feito perder os movimentos do lado esquerdo do corpo.

Desde o dia 17/8/2017, quando aconteceu o sinistro de trânsito, o jovem já passou por cinco cirurgias. Duas foram no braço esquerdo - quebrado no punho e na altura do cotovelo, exatamente onde estava pendurado o capacete.

Uma na perna direita - que teve fratura exposta -, e duas na cabeça. Uma delas para introduzir uma válvula de drenagem de líquido no crânio.

“Foi tudo muito violento e por culpa minha. Somente minha. Já tinha o hábito de pilotar sem capacete e não tinha medo. Naquele dia, tirei mais uma vez e forcei a ultrapassagem”, relata Gleybson.

“Achei que o motoqueiro que vinha no sentido contrário - e que estava certo - iria ceder, assim como o motorista do caminhão que eu tentava ultrapassar. Mas isso não aconteceu. Só me lembro da velocidade em que estava: 120 km/h”, relembra.

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Gleybson, em 2017 com 20 anos, ultrapassou todos os limites no trânsito - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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A 120 km/h numa motocicleta, capacete no braço, sem sapato (na verdade, uma sandália de dedo), forçou a ultrapassagem de um caminhão e se chocou contra uma outra moto que transportava gás de cozinha. Foi um milagre estar vivo para contar a história - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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A 120 km/h numa motocicleta, capacete no braço, sem sapato (na verdade, uma sandália de dedo), forçou a ultrapassagem de um caminhão e se chocou contra uma outra moto que transportava gás de cozinha. Foi um milagre estar vivo para contar a história - GUGA MATOS/JC IMAGEM

Apesar de tanta imprudência, Gleybson não tinha bebido no dia do sinistro. Pelo menos isso.

LUTA LONGA E DIÁRIA

Tudo que o jovem passou até agora é apenas um pouco da luta diária que enfrenta. Ele e a família, que vivem em função da difícil reabilitação de uma vítima sobrevivente do trânsito.

A semana é dividida entre a AACD Recife, na Ilha Joana Bezerra, área central da capital, e as visitas periódicas a cada três e seis meses ao neurologista e ortopedista.

Na AACD, onde recebe tratamento que, desde 2020, tem feito a diferença na recuperação do jovem, são sessões de fisioterapia, fisioterapia aquática, terapia ocupacional, fonoaudiologia e psicologia.

O padrasto, Ismar Felipe, é quem atualmente cuida de Gleybson, enquanto a mãe do jovem, Cirlene Barbosa, trabalha como auxiliar de serviços gerais na Prefeitura de Itapissuma.

Gleybson precisa de assistência 24h por dia. Já evoluiu muito desde o sinistro, conseguindo fazer alguns movimentos, mas só anda de cadeira de rodas.

E segue tendo sonhos. “Quero fazer uma faculdade de pedagogia. Sempre gostei de crianças e gostaria de, um dia, dar aulas”, diz. O jovem também pratica atividades paraolímpicas na UFPE.

GUGA MATOS/JC IMAGEM
A 120 km/h numa motocicleta, capacete no braço, sem sapato (na verdade, uma sandália de dedo), forçou a ultrapassagem de um caminhão e se chocou contra uma outra moto que transportava gás de cozinha. Foi um milagre estar vivo para contar a história - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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A 120 km/h numa motocicleta, capacete no braço, sem sapato (na verdade, uma sandália de dedo), forçou a ultrapassagem de um caminhão e se chocou contra uma outra moto que transportava gás de cozinha. Foi um milagre estar vivo para contar a história - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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A 120 km/h numa motocicleta, capacete no braço, sem sapato (na verdade, uma sandália de dedo), forçou a ultrapassagem de um caminhão e se chocou contra uma outra moto que transportava gás de cozinha. Foi um milagre estar vivo para contar a história - GUGA MATOS/JC IMAGEM

CUSTO PARA A SOCIEDADE

Gleybson é mais um exemplo do custo do trânsito brasileiro, sem educação, sem fiscalização e ainda sem limites.

O jovem, que perdeu a capacidade de trabalho aos 20 anos, recebeu o DPVAT (R$ 13.500) e sobrevive com um salário mínimo do auxílio invalidez (BPC), que pela gravidade do quadro, deverá virar aposentadoria em breve.


Quer ajudar Gleybson?
Doações podem ser feitas à família, que necessita. Contato: (81) 9238-1804 (WhatsApp)

FOTOS: LÉO MOTTA/JC IMAGEM
Ítalo era passageiro da motocicleta conduzida pelo irmão mais novo e teve a perna praticamente arrancada do corpo quando caíram no chão ao tentar desviar de uma cratera na BR-101 - FOTOS: LÉO MOTTA/JC IMAGEM

Negligência que mutila e destrói sonhos

O trânsito e a negligência que o envolve arruinaram os sonhos e os projetos de vida de Ítalo Abner Pereira Pinto, ex-bombeiro civil de 36 anos. Aos 31, Abner perdeu a perna esquerda ao cair da garupa de uma motocicleta em um dos diversos buracos que dominavam o chamado contorno urbano que a BR-101 - a rodovia mais importante do Brasil - faz do Grande Recife, ainda em 2016.

Os buracos da rodovia, aliás, sempre fizeram parte da rotina de quem reside em Pernambuco. São quase sazonais. Três anos depois do sinistro com o bombeiro civil foram corrigidos num projeto de requalificação duvidoso e até hoje investigado pela Justiça Federal.

Ítalo era passageiro da motocicleta conduzida pelo irmão mais novo e teve a perna praticamente arrancada do corpo quando caíram no chão ao tentar desviar de uma cratera que os surpreendeu na Guabiraba, bairro da periferia da Zona Norte do Recife, rodeado pela BR-101.

O motorista de um ônibus que trafegava ao lado, também surpreendido pelo mesmo buraco - como conta Ítalo -, não conseguiu frear a tempo e esmagou a perna do bombeiro civil. Ítalo passou por cinco cirurgias desde então. O irmão, que conduzia a moto, ficou bem. Teve ferimentos, mas nenhuma sequela.

No caso do sinistro que os envolveu, a causa foi a negligência do poder público, algo comum no Brasil e ainda mais no setor de trânsito e transporte. Não teve álcool nem velocidade, mas, mesmo assim, mutilou e, por pouco, não matou - o que evidencia o quanto o setor precisa de atenção do País.

LÉO MOTTA/JC IMAGEM
Ítalo Abner, ex-bombeiro civil que perdeu a perna num sinistro de trânsito de moto provocado pelos buracos na BR-101, no Grande Recife - LÉO MOTTA/JC IMAGEM

“Não há dúvidas sobre isso. O próprio registro do acidente feito pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) confirmou que a causa foram os buracos da BR-101. Meu irmão trafegava certo, na velocidade adequada, quando foi surpreendido por uma cratera na altura da Guabiraba”, relembra Ítalo Abner.

“Passamos por vários trechos da BR que estavam quase destruídos, sempre com muito medo e cuidado. Mas quando achamos que a pista estava melhor, o buraco gigante nos pegou. Meu irmão tentou desviar, mas caiu e o ônibus que estava próximo não conseguiu parar”, segue.

Atualmente, cinco anos depois de perder a perna - completados no dia 23 de junho de 2022 -, Abner dá risada e brinca, consciente de que venceu a principal batalha, só sua: a reabilitação para conseguir recuperar a autonomia e seguir vivendo.

“Hoje, depois de tudo, tudo, de toda a luta, nem lembro que tive uma perna. A prótese me deu essa autonomia (risos). Mas não tenho o mesmo ritmo, lógico, e o que sinto mais falta é da mobilidade para acompanhar meus filhos”, desabafa.

Ítalo tem três filhos, um deles do primeiro casamento da mulher: Israel, 5 anos, Ícaro, 7, e Guilherme Felipe, 16.

LÉO MOTTA/JC IMAGEM
Ítalo Abner, ex-bombeiro civil que perdeu a perna num sinistro de trânsito de moto provocado pelos buracos na BR-101, no Grande Recife - LÉO MOTTA/JC IMAGEM
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Ítalo Abner, ex-bombeiro civil que perdeu a perna num sinistro de trânsito de moto provocado pelos buracos na BR-101, no Grande Recife - LÉO MOTTA/JC IMAGEM
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Ítalo era passageiro da motocicleta conduzida pelo irmão mais novo e teve a perna praticamente arrancada do corpo quando caíram no chão ao tentar desviar de uma cratera - LÉO MOTTA/JC IMAGEM

LUTA E DESAFIOS DIÁRIOS

Mas para chegar a esse estágio pleno de aceitação foi um longo caminho e muitos desafios. Inclusive econômicos, que fazem parte da realidade de muitos dos mutilados pelo trânsito.

A busca pela autonomia do pai de família foi intensa. “O começo é sempre mais difícil. Hoje, com uma boa prótese, consigo viver normalmente”, diz o ex-bombeiro civil.

“Tem muitas restrições e obstáculos, como descer escadas, por exemplo. Ainda mais para mim, que tenho 1,92 metro. Mas procuro viver uma vida normal. Sei que sou um vencedor só pelo fato de estar vivo e de ver meus filhos cresceram”, afirma.

Ítalo precisou brigar judicialmente para conseguir indenizações financeiras que permitissem sobreviver com a família. Conseguiu em parte, e ainda segue brigando.

Atualmente, além do auxílio-acidente (benefício previdenciário indenizatório pago pelo INSS) de um pouco mais de um salário mínimo, Ítalo Abner recebe um salário vitalício pago pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit) devido aos buracos da BR-10.

ACERVO PESSOAL
Ítalo Abner, ex-bombeiro civil que perdeu a perna por causa de buracos na BR-101 no contorno do Grande Recife - ACERVO PESSOAL
ACERVO PESSOAL
Ítalo Abner, ex-bombeiro civil que perdeu a perna por causa de buracos na BR-101 no contorno do Grande Recife - ACERVO PESSOAL

Ainda luta por uma indenização financeira.
“O custo da reabilitação é muito alto. O que é oferecido pelo SUS - e ainda bem que temos ele, caso contrário seria muito pior - não é de boa qualidade. E tudo para amputação é muito caro”, relata.

“Um pé de fibra de carbono, por exemplo, custa mais de R$ 5 mil. Um encaixe de joelho de boa qualidade custa R$ 12 mil. E a manutenção também é cara. E para ter uma boa qualidade de vida é necessário ter materiais bons. O que é fornecido pelo SUS é paliativo”, ensina.

Sobre os sonhos, Ítalo Abner teve que abrir mão do maior deles até o sinistro: ser bombeiro civil.


Quer ajudar Ítalo?
Doações podem ser feitas à família, que necessita. Contato: (81) 98505.6073 (WhatsApp)

 

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