PRIVACIDADE

Guerra entre Facebook e Apple mudará seu celular e futuro da privacidade

Tim Cook insinua que Mark Zuckerberg ajudou a minar a democracia no mundo e impõe mudanças nos aplicativos do iPhone, ameaçando negócios do Facebook

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Guilherme Ravache

Publicado em 03/02/2021 às 10:49 | Atualizado em 03/02/2021 às 11:22
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Boicote de anunciantes, ameaça de governos, movimentos para deletar o Facebook, escândalos de privacidade como o da Cambridge Analytica. Nada disso parecia ameaçar os negócios do Facebook que ano após ano apresenta resultados recordes de receita e crescimento.

A empresa de Mark Zuckerberg parecia inabalável. Mas isso foi antes da Apple entrar em guerra com o Facebook ao declarar regras mais rígidas para garantir a privacidade dos usuários do iPhone. Agora, o combate chegou a novos níveis com as recentes declarações de Tim Cook.

Na quinta-feira da semana passada, o CEO da Apple, Tim Cook, fez um discurso explicando as futuras mudanças de privacidade de sua empresa, que vai proibir aplicativos de compartilhar o comportamento do usuário do iPhone com terceiros, a menos que os usuários dêem consentimento explícito. Cook participava de uma conferência sobre computadores, privacidade e proteção de dados em Bruxelas, evento convocado para o Dia Internacional da Privacidade de Dados. A empresa também compartilhou um novo relatório mostrando que os apps de celular em média têm seis rastreadores de terceiros.

No evento, Cook surpreendeu ao revelar que essas novas políticas foram elaboradas com o Facebook em mente. O CEO criticou o modelo de negócios de mídia social, que se baseia no monitoramento do comportamento das pessoas a fim de direcionar anúncios a elas.

“O fato é que um ecossistema interconectado de empresas e corretores de dados, de fornecedores de notícias falsas e vendedores de divisão, de rastreadores e vendedores ambulantes apenas procurando ganhar dinheiro rápido, está mais presente em nossas vidas do que nunca. A tecnologia não precisa de uma vasta coleção de dados pessoais, agrupados em dezenas de sites e aplicativos, para ter sucesso”, disse Cook.

Cook não mencionou o nome do Facebook, mas ficou claro quem ele tinha em mente quando fez perguntas retóricas como "Quais são as consequências de ver milhares de usuários ingressarem em grupos extremistas e, em seguida, perpetuar um algoritmo que recomenda ainda mais?"

A guerra entre os gigantes de tecnologia vem sendo escalada há anos. Em 2018 foram somente trocas de farpas, como quando Cook declarou: “Se nosso cliente fosse nosso produto, poderíamos ganhar muito dinheiro. Decidimos não fazer isso”. Mas agora o confronto chegou a níveis surpreendentes e raramente vistos na indústria.

A Apple adotou a privacidade como um diferencial de sua marca frente ao Google e a outros concorrentes. A medida é inteligente por reforçar o status premium da marca. Mas agora a Apple adotará uma medida radical para aumentar o controle do usuário sobre as informações que compartilha com terceiros.

Nos próximos meses, um novo recurso em iPhones vai limitar a capacidade do Facebook (e todas as empresas que desenvolvem aplicativos para iOS) de coletar dados de usuários. É assim que a Apple descreve o novo sistema: “Em Configurações, os usuários poderão ver quais aplicativos solicitaram permissão para rastrear e fazer as alterações que acharem adequado. Esse requisito será amplamente implementado no início da primavera, com o lançamento do iOS 14, iPadOS 14 e tvOS 14, e já obteve apoio de defensores da privacidade em todo o mundo”.

O Facebook afirma que a mudança afetaria pequenos desenvolvedores. Mas certamente o maior impacto seria nos principais aplicativos da empresa de Zuckerberg (Facebook e Instagram). A mudança da Apple exigirá que os aplicativos móveis busquem a permissão dos usuários antes de rastrear suas atividades, restringindo o fluxo de dados que o Facebook obtém dos aplicativos para ajudar a construir perfis de seus usuários. Esses perfis permitem que os anunciantes do Facebook segmentem seus anúncios de maneira eficiente.

A mudança também tornará mais difícil para os anunciantes medir o retorno que obtém pelos anúncios veiculados no Facebook. O motivo pelo qual o Facebook pode ganhar US$ 25,50 (R$ 140) por usuário ativo mensalmente, a cada ano, é que seus anúncios são hiper direcionados com base em vários sinais. Especialistas especulam que a queda de receita do Facebook poderia ser superior a 10%.

O Facebook também iniciou uma campanha publicando anúncios contra a Apple em grandes jornais. "Nós estamos enfrentando a Apple pelos pequenos negócios em todo o lugar”, lia-se nos anúncios. A rede social diz que restrições sobre informações coletadas em iPhones prejudica pequenos negócios, pois o recurso limita o alcance da publicidade segmentada, o que aumentaria os custos para pequenas e médias empresas.

Em uma conversa com investidores na quarta-feira, Zuckerberg gastou mais tempo discutindo a Apple do que qualquer outro problema da empresa. “A Apple tem todos os incentivos para usar sua posição dominante na plataforma para interferir na forma como nossos aplicativos e outros aplicativos funcionam, o que eles fazem regularmente para dar preferência aos seus próprios”, disse Zuckerberg ao insinuar um potencial monopólio da Apple.

Zuckerberg está certo sobre uma coisa: a Apple está usando sua posição dominante no mercado de smartphones para impor unilateralmente uma grande mudança na forma como os dados do usuário são rastreados e compartilhados online.

Como aponta Gilad Edelman, na Wired, “Estabelecer um regime “opt in”, no qual a privacidade é o padrão e os usuários têm que dar consentimento para compartilhar seus dados, tem sido um sonho dos ativistas da privacidade. Poucas pessoas estão dispostas a se dar ao trabalho de excluir todos os sites ou aplicativos individuais que usam, muito menos aqueles que não sabem que os estão rastreando. O opt-in é considerado tão politicamente e até mesmo legalmente difícil de alcançar, no entanto, que mesmo a lei de privacidade recém-promulgada na Califórnia, a mais ambiciosa do país, não vai tão longe. E, no entanto, a Apple, uma empresa privada, pode virar um interruptor e alcançar o que nenhum regulador do governo dos EUA conseguiu - pelo menos no que diz respeito à quase metade do mercado de telefonia móvel dos EUA que ela controla”.

Em seus comentários no painel de privacidade, Tim Cook afirmou que as mudanças de privacidade da Apple eram um movimento contrário às forças que minam a democracia. “Em um momento de desinformação galopante e teorias de conspiração alimentadas por algoritmos, não podemos mais fechar os olhos para uma teoria da tecnologia que diz que todo engajamento é um bom engajamento - quanto mais longo, melhor - e tudo com o objetivo de coletar o máximo de dados que possível". Se você pensou no Facebook e Zuckerberg, não foi o único.

A guerra está declarada. E o resultado desse combate definirá o futuro da privacidade e de todos os smartphones no Ocidente. Porque historicamente, as mudanças implementadas pela Apple determinam os rumos do mercado de telefonia. Se as mudanças propostas pela Apple forem bem recebidas, o Android (do Google), Samsung e demais competidores terão de se adaptar e deixar os controles de privacidade mais efetivos para os usuários, o que seria um problema para o Facebook.


Sobre semana passada

Semana passada publiquei aqui o texto “Signal e Telegram podem se tornar problema maior que WhatsApp”. Recebi uma mensagem da leitora Flávia como uma crítica construtiva (coisa rara em tempos digitais). Segundo Flávia, o texto banaliza a questão da privacidade.

Acredito que o foco do texto seja a ironia do WhatsApp se tornar vítima de fake news e os riscos de plataformas como Signal e Telegram. Ou seja, a intenção não foi banalizar a privacidade. Se aprendemos algo ao longo desses anos, é que a privacidade é fundamental, e principalmente, que as pessoas querem privacidade. E inclusive, conscientemente (ou não), abrem mão dela em diversos momentos em troca de maior comodidade.

Já sobre a mudança de política do WhatsApp, vale lembrar que sendo uma plataforma privada, ela está sujeita às regras do dono da plataforma (o Facebook). E o Facebook tem o direito de impor as regras da plataforma, desde que dentro dos limites das Leis vigentes. Se a mudança é boa ou ruim para a privacidade, ou se a comunidade irá aceitá-las, é outro caso.

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