LITERATURA

Em Apátridas, Alejandro Chacoff mergulha na memória familiar e no Brasil dos anos 90

Romance de estreia do ensaísta e crítico literário acaba de ser lançado pela Companhia das Letras. Confira a resenha e entrevista com o autor:

Valentine Herold
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Valentine Herold
Publicado em 24/04/2020 às 18:17 | Atualizado em 14/09/2020 às 20:59
Chico Cerchiaro/ Divulgação
Alejandro Chacoff: "O confessionalismo de um livro assim só funciona se o leitor sentir que o autor está arriscando algo também, se machucando e se colocando numa posição desconfortável" - FOTO: Chico Cerchiaro/ Divulgação

O que de fato significa ser apátrida ou viver a partir de um desterro? Cada experiência identitária em relação ao lugar onde se nasceu e se vive é única e nem sempre os conceitos são sentidos da mesma forma como são definidos nos dicionários. Alejandro Chacoff sabe bem disso e não apenas por ter passado a infância nos Estados Unidos após ter nascido em Cuiabá, nem por já ter morado no Chile, na Argentina e na Inglaterra, mas porque mergulhou nessas lembranças e na temática do não pertencimento territorial para escrever seu primeiro romance, recém-lançado e intitulado Apátridas (Companhia das Letras, 192 pgs., R$ 49,90).

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O livro é uma memória familiar e um aguçado olhar sobre o Brasil dos anos 1990, contado em primeira pessoa por um pré-adolescente (cujo nome não é revelado) que desembarca no país após a separação dos pais. Assim como o próprio Chacoff, o protagonista viveu a infância nos Estados Unidos com a mãe brasileira, o pai chileno e a irmã.

"Entre idas e vindas, passei metade da minha vida em outros países, e assim como o narrador, tenho uma relação muito ambígua com o conceito de pertencimento geográfico. Se por um lado ele me causa certa repulsa, vez ou outra também sinto o seu magnetismo, o seu apelo, até que me lembro outra vez de quão absurdamente abstrata é a ideia, e volto então a sentir repulsa, alienação, e assim num vai e vem incessante e infinito", reflete o autor.

 

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Apátridas é o romance de estreia de Alejandro Chacoff - Divulgação

Apesar de ser um livro sobre a dinâmica de uma família, a irmã (possivelmente mais nova, não há muita indicação) não recebe muita atenção ao longo do romance. Aliás, as personagens femininas não são centrais - elas têm importância, sim, e protagonizam momentos decisivos, mas são as figuras masculinas que ganham destaque nas lembranças do narrador.

Por isso é importante atentar-se para o sufixo do título do livro, pois o "a" indica também a ausência do pai depois do divórcio. São poucas as notícias que o narrador irá receber deste pai enigmático e ganancioso, cujo emprego sempre foi mal explicado assim como sua história familiar. As informações são dadas sempre a partir de fofocas dos tios e das ligações que este pai faz ao ex-sogro, interceptadas pelo filho.

Outras figuras paternas surgem então e se fazem centrais: o avô, seu José, um senhor de origem humilde que fez fortuna com a concessão de um cartório, e o motorista da casa, Romualdo, que é “como um filho” para seu José. Relações familiares e trabalhistas turvas de um Brasil em que as discrepâncias sociais são tão escancaradas quanto naturalizadas.

Entre as remessas de José para o ex-genro e os pedidos de ajuda financeira por parte de dezenas de parentes, o dinheiro é também um pouco personagem neste livro. "Ainda que o narrador não demonstre um fascínio explícito por gastar ou ganhar, o dinheiro, sobretudo na relação entre o pai e o avô, perpassa a sua vida, e sem dúvida lhe afeta", pontua o autor. "Escrever sobre dinheiro de uma forma mais detida ou obscena é também uma forma de ter um olhar menos complacente em relação a uma classe abastada, à qual o narrador sem dúvida pertence, ainda que de uma forma capenga."

O livro se vale de muitos elementos autobiográficos, mas ainda assim não pode ser definido como autoficção. "Um problema do termo é que, ao ouvi-lo, as pessoas parecem sempre pensar mais no ‘auto’ do que na ‘ficção’, quando talvez devesse ser o contrário. Pois é o romance que fagocita outras formas, e não o inverso", acredita Alejandro. 'O confessionalismo de um livro assim só funciona se o leitor sentir que o autor está arriscando algo também, se machucando e se colocando numa posição desconfortável."

Leia um trecho do livro:

"(...) No voo para São Paulo, e depois para o Mato Grosso, minha mãe falou muito sobre o meu pai. Disse que ele já tinha admitido gostar do Pinochet (uma frase que na época não me dizia muita coisa); que ele não ajudava nem a própria mãe no Chile (ela morava na periferia de Santiago); que ele não sabia cozinhar. Falava como se não o conhecêssemos, como se não tivéssemos passado

Os dois ou três voos até o Mato Grosso foram tranquilos. Senti prazer em ouvir aquelas histórias sobre o meu pai. Eu nunca o compreendera bem; me parecia uma figura etérea e sem muitos contornos de personalidade. Era bom saber que tinha vivido aventuras romanescas, que tinha um passado do qual eu não fazia ideia. Na Filadélfia, ele ficava sempre ali na sala, com seu ar distraído, lendo o Philadelphia Inquirer e o New York Times. Falava conosco num tom muito gentil, que, conforme crescíamos, se tornava cada vez mais obsoleto, por ser infantil demais."

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Apátridas é o romance de estreia de Alejandro Chacoff - FOTO:Divulgação

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