Hino

Com 'Rhythm Nation', Janet Jackson protestou contra injustiças raciais e colocou o mundo para dançar

Lançado em 1989, álbum é um marco na música pop e influenciou álbuns como o 'Lemonade'

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 03/06/2020 às 21:02 | Atualizado em 03/06/2020 às 21:07
Reprodução/JanetBr
Turnê do Rhythm Nation foi vista por mais de 2 milhões de pessoas e parte dos lucros doada para bolsas de estudo - FOTO: Reprodução/JanetBr

Se hoje é exigido dos artistas posicionamento e ação no combate às injustiças, em um passado não muito distante parecia haver um entendimento quase cristalizado de que música pop e política não deveriam se misturar. Essa dicotomia promovida pelas grandes gravadoras - e seu sistema branco, masculino, hétero e cisgênero - não conseguiu conter as vozes de artistas que utilizaram suas vozes e plataformas para pautar debates sobre temas urgentes e clamar por transformações. Uma das obras seminais neste sentido na música pop é Rhythm Nation, álbum de Janet Jackson lançado em 1989.


Assinada em 1964, após uma longa luta do movimento negro, a Lei dos Direitos Civis acabava oficialmente com as medidas segregação racial ainda vigentes em vários estados americanos. As estruturas racistas daquele país, assim como no Brasil, no entanto, permanecem até hoje, como comprovam as injustiças diárias vividas pelo povo negro, como a morte de George Floyd, homem negro de 46 anos assassinado em Minneapolis por um policial branco. O crime desencadeou uma série de protestos que têm mobilizado a luta antirracista nos EUA.

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A mesma Minneapolis que hoje é epicentro das manifestações, sofre com as tensões raciais há décadas. E foi nesse cenário que, no final dos anos 1980, Janet Jackson e os produtores Jimmy Jam e Terry Lewis optaram por não isentar-se e transpor o debate para espaços de poder, como a televisão, a rádio e as pistas de dança. O comprometimento com a pauta política continuava a tradição de artistas da música negra, como Nina Simone e Marvin Gaye, ativos no movimento pelos direitos civis na década de 1960, mas representava uma exceção no pop.


Aquela década foi marcada por uma série de problemas sociais, da escalada da violência nas comunidades socialmente vulneráveis (de maioria negra e latina), das desigualdades sociais, do consumo de drogas como o crack e a epidemia da Aids. Nela, o hip hop começa a ecoar as vozes periféricas e assumir contornos cada vez mais políticos e de denúncia social, com a ascensão de grupos como Public Enemy.


VOZES EM PROTESTO


Quando entrou no estúdio para gravar seu quarto álbum, Janet vivia um momento de ascensão. Seu álbum anterior, Control (1986), o terceiro da carreira, mas o primeiro em que teve controle criativo, foi um sucesso de crítica e público, vendendo mais de 6 milhões de cópias apenas nos Estados Unidos. A caçula da família Jackson começava a cravar um nome para si e sua gravadora pretendia não mexer na fórmula vencedora. A ideia era que ela gravasse uma espécie de continuação do Control, desta vez focada nos dramas familiares.


Mas Janet, à época com 22 anos, se afetava cada vez mais pelas questões do seu entorno e não queria passar imune aos problemas do mundo. Dessas inquietações nasceu o Janet Jackson’s Rhythm Nation 1814, em uma alusão ao ano em que foi escrito o hino americano. O álbum começa com um com um juramento no qual ela entoa: “Somos uma nação sem barreiras geográficas, unida por nossas crenças; somos indivíduos com pensamentos afins, compartilhando uma visão em comum; pressionando por um mundo livre de divisões de cor”.


A faixa-título do álbum é um chamado ao engajamento político e antirracista. “Com a música do nosso lado/ Para quebrar as entre as raças/ Vamos trabalhar juntos para melhorar nosso modo de vida”, canta. Questões como gravidez na adolescência, pobreza, bullying e violência embasam State of The World. Em The Knowledge, ela mostra estar em consonância com o hip hop, uma cultura ainda menosprezada pelo mainstream. Na letra, a cantora e compositora alerta para a importância do conhecimento e da informação como formas de emancipação.

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A urgência dessas pautas são traduzidas pela produção instigante de Jimmy Jam e Terry Lewis, que imprimem uma sonoridade industrial, com batidas marcadas e marcantes. O primeiro bloco é interrompido por um interlude no qual Janet questiona: “Entendeu o ponto? Ótimo, vamos dançar”, logo emendando na vibrante Miss You Much. A partir daí, a euforia proposta por canções como Escapade, Love Will Never Do (Without You) e Alright só é interrompida por Living In A World (They Didn’t Make).


Quase uma anomalia em meio às faixas dançantes, a canção toca em um tema sombrio que viria a ganhar ainda muitas manchetes nas décadas seguintes: os massacres em escolas americanas. A faixa chega ao ápice com Janet e um coro de crianças cantando até serem bruscamente interrompidos por sons de balas e gritos. A composição da música foi inspirada por incidente real.


Disposta também a explorar novas sonoridades, ela abraça o rock em Black Cat, pela qual foi indicada ao Grammy de melhor performance rock, fazendo dela a única artista a ser indicada em cinco gêneros musicais diferentes na premiação - pop, dance, rock, rap, e R&B. Com o Rhythm Nation, Janet também fez história no Grammy ao se tornar a primeira mulher indicada na categoria Produtor do Ano.


FENÔMENO


Naquele momento, a era do vídeo se consolidava e música e imagem se tornavam cada vez mais indissociáveis. Para divulgar o Rhythm Nation, Janet criou o que foi chamado na época de um telemusical - um curta-metragem de cerca de 30 minutos dirigido por Dominic Sena. Com estreia na MTV, a produção acompanhava uma dupla de adolescentes que tem seus sonhos interrompidos pela pobreza e o tráfico de drogas, mas encontram refúgio na música e na dança com o grupo liderado por Janet.


O visual militar da artista no vídeo da faixa-título se tornou icônico na cultura pop, assim como a coreografia intricada e milimetricamente sincronizada, posteriormente emulada por artistas como Britney Spears, Beyoncé e Nsync. Apesar da temática arriscada para o pop da época, a empreitada de Janet ecoou junto ao público: os sete singles do álbum alcançaram o top 5 da parada americana, um recorde até hoje não batido, e quatro deles atingiram o primeiro lugar.


O disco foi o mais vendido de 1990 nos Estados Unidos e, no total, vendeu 14 milhões de cópias ao redor do mundo, consolidando Janet como uma estrela capaz de competir com seu irmão, Michael, e Madonna. Após o Rhythm Nation, ela se tornou alvo de uma disputa entre gravadoras que a levou a assinar um contrato de cerca de 40 milhões de dólares com a Virgin Records, então o valor mais alto já pago a um músico.

A turnê do álbum, a primeira da carreira de Janet, foi vista por mais de 2 milhões de pessoas e detém o posto de turnê de estreia mais bem sucedida da história. Comprometida com o ativismo para além da música, Jackson destinou parte dos lucros da turnê para criar um programa de bolsas de estudo, além de doar verba para várias instituições educacionais.


A questão racial não sairia de pauta nos trabalhos seguintes de Janet e continua a pautar suas apresentações, como na recente turnê State of The World, em que ela denunciava os supremacistas brancos e exigia justiça pelos negros assassinados pelo estado.


A ousadia da cantora abriu portas para que, nas décadas seguintes, artistas pop como Beyoncé (que já declarou sua inspiração em Jackson, inclusive reverenciando o Rhythm Nation) pudessem não só experimentar sonoramente, como também explorar temas políticos em sua música. A maioria dos problemas apontados por ela permanecem, infelizmente, atuais 30 anos depois e a “Nação do Ritmo” ainda uma utopia.

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