Há 50 anos, a atriz Barbara Loden lançava seu primeiro e único longa-metragem. Em 1 hora e 45 minutos, Wanda (1970) é um aperitivo e prato principal de uma possível carreira na direção com potencial gigantesco.
Escrito e dirigido por Loden, que também protagoniza o papel-título, o filme é uma obra independente, filmado em 16mm, com um orçamento de cerca de U$ 100 mil. A atriz e Michael Higgins são os únicos atores profissionais em cena, e boa parte delas são improvisadas.
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Toda concepção imagética e enredo de Wanda abraçam essas condições de trabalho. A ideia de uma câmera crua, quase documental, e um roteiro em mutação perpétua são partes fundamentais para a rede criativa do longa.
"Não vejo como alguém pode predeterminar como o filme será apresentado, ou por que alguém iria querer isso. É um processo criativo que muda todos os dias, e você muda todos os dias enquanto trabalha nele", disse Loden ao American Film Institute, na época do lançamento da obra.
Foram essas características que levaram o crítico Richard Brody, do The New Yorker, descrever Barbara Loden como a "contraparte feminina de John Cassavetes”.
De fato, há em Wanda pulsões artísticas similares – mesmo que o filme tenha sido lançado antes das principais obras de Cassavetes, como Noite de Estreia (1977) e A Morte de um Bookmaker Chinês (1976).
Há ainda ideações próximas a de O Perigoso Adeus (1973), de Robert Altman, com uma mise-en-scène que ainda não sabe o que é, e ao mesmo tempo não se preocupa em ser algo em definitivo.
O que talvez não seja partilhado por Wanda, ou seja, o que o torna um filme com a assinatura de Loden, parte das motivações basilares e empíricas da obra.
Na trama, acompanhamos a personagem-título em uma jornada errante, após abandonar todos os papéis sociais impostos às mulheres.
Nos primeiros minutos, somos atordoados por um choro alto de bebê. Uma mulher, ao que parece da família de Wanda, acorda e segura a criança enquanto se dirige a cozinha para despedir-se do marido em rumo ao trabalho.
Após o aceno ser rudemente ignorado pelo homem, e ainda sob choros barulhentos, somos apresentados a protagonista, semi-nua, largada no sofá. Um misto de alívio e apreensão. Pelas características de Wanda, adiantamos que aquele som não nos importunará em cena novamente. Enquanto na rápida aparição do “marido”, compreendemos o peso dessa constatação.
Wanda não quer ser esposa, dona de casa, e muito menos mãe. Cenas à frente, ela abre mão da guarda dos filhos sem muito esforço. “Ele [seu ex-marido] cuidará melhor”, diz ao juiz.
Não há magia ou glamourização na personagem, e muito menos um destino próximo. Todo filme é carregado de uma onda niilista e melancólica.
Isso porquê Wanda, que individualmente representa algo à frente, está presa em um entorno que continua sendo algo atrás. Durante toda a duração do longa, apenas nos deparamos com figuras masculinas detestáveis que a enxergam como um objeto sexual de fácil acesso. Sem muita reação, ela vai sendo puxada por essas narrativas.
Loden, sempre brilhante em cena, consegue manter todo foco na presença da sua personagem em tela – e todas as significações e tensionamentos que surgem a partir disso. Uma espécie de Vênus Loura, de Sternberg, sem a paixão pela maternidade e a liberdade sexual, mas com uma auto-consciência da crueza de sua existência.
O roteiro, rascunhado pelo seu marido, o lendário cineasta Elia Kazan, foi reescrito e inspirado por Loden e seus sentimentos de falta de “objetivo”, e também pela leitura de um jornal que detalhava a participação de uma mulher num assalto a banco. É aí que entra a segunda parte da trama, onde Wanda é levada por Dennis (Michael Higgins) a embarcar numa jornada de crimes.
Não espere algo como Bonnie e Clyde, Dennis é um homem tosco que tem em Wanda uma mera cumplice dos seus atos e abusos sexuais – como cada homem que ela cruza durante todo o filme. Vamos acompanhando uma jornada fatalista, mas sem o rumo definido.
É assim que o filme se encerra para a personagem, e assim que ele ressoa cinquenta anos depois. Não menos também, toda genialidade de Barbara Loden, que fez de Wanda uma personagem e obra indistinguível e influente, tanto na sua concepção imagética e métodos de produção, como no seu enredo complexo.
"É como se, nesse ponto do filme, ela tivesse encontrado uma maneira de santificar a mesma coisa que ela tentou nos mostrar como uma espécie de degradação. Eu vejo uma espécie de glória ali, uma glória muito poderosa, muito violenta, muito profunda”, escreveu Marguerite Duras sobre a última cena do longa – a síntese perfeita do que é Wanda.
Tudo parece não ser "dela" (como ela mesmo cita em certa cena), mas tudo é sobre ela. A sua força política e cinematográfica estão ali – fora e, não menos, dentro do filme, entranhado nos planos, encenações e imagens. É dessa fonte que hoje bebem (bem ou mal) vários cineastas atuais, dos irmãos Safdie a Noah Baumbach, e que beberam muitos antigamente.
Barbara Loden faleceu aos 48 anos, diagnosticada com câncer de mama. Wanda (1970) foi restaurado e encontra-se disponível em DVD e no serviço de streaming da Criterion.
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