No último sábado, Caetano Veloso comemorava a chegada de seus 78 anos em uma aguardada live, prometida desde os primeiros meses da pandemia. Na sala de seu apartamento, o músico passeou por seu repertório de décadas, sobretudo suas composições de grande apelo popular, acompanhado dos filhos Zeca, Tom e Moreno. Este último, para tocar Pardo, se muniu de um prato e faca, instrumentação tradicional dos sambas de roda da Bahia, em especial da região do Recôncavo, com penetração também no Rio de Janeiro. Moreno voltou usar o instrumento na live, assim como já o fez durante a turnê do projeto Ofertório, com Veloso pai se apresentando com os Velosos filhos.
Se no sábado o prato e a faca foram uma ferramenta rítmica, nos dias seguintes se tornaram o centro de um debate envolvendo a mídia especializada, pesquisadores e olhares partindo de diferentes contextos geográficos em relação à cultura popular, sobretudo a nordestina e afrodiaspórica. Uma nota da revista Rolling Stone Brasil, uma das maiores dentro da cobertura musical, classificava o uso do instrumento como um "momento inusitado e cômico", afirmando ainda que se tratava de uma falta de instrumentos, mesmo levando em conta que a apresentação foi produzida pelo maior conglomerado de mídia do país. Já a Folha de São Paulo afirmou que o prato e a faca serviram para dar uma atmosfera caseira a live.
Nas rede sociais, começaram a pipocar as primeiras críticas, questionando a ignorância em relação a história do samba de roda baiano e suas possíveis causas, levando em conta que a nota parte de um veículo sudestino. O pesquisador e jornalista pernambucano GG Albuquerque escreveu o artigo Samba de roda: o prato e faca como tecnologia sonora (Leia aqui), combatendo visões restritas e exotizadoras da arte afrobrasileira, publicado em Volume Morto, seu site. Ele traça um panorama histórico que vai desde os primeiros registros do uso do prato e faca no samba, passando ainda por nomes como João da Baiana e Dona Edith do Prato, chegando em Dona Canô, mãe de Caetano e Maria Bethânia, e no pagodão baiano do Psirico.
Nas mesmas redes sociais, a questão acabou passando por caminhos colocam a discussão no próprio fazer jornalístico, com apontamentos de que os textos eram frutos de um cenário de precarização do mercado, incluindo a presença de jovens profissionais nos veículos e que as críticas feitas refletem uma falta de empatia para esse cenário. "A questão nunca foi destratar a Rolling Stone ou a Folha, mas quando dois veículos falam sobre a mesma coisa e acham que o prato e faca é uma coisa cômica ou caseira, alguma coisa de errado tem. Isso revela sim uma precarização do jornalismo, mas não adianta jogar essa carta da precarização para blindar o jornalismo cultural e não reconhecer o grande problema que é a predominância de pessoas brancas do sudeste nessas redações" , elabora Albuquerque.
Na última terça-feira, a repercussão embalada pela faca raspando o prato chegou em Caetano. Em suas redes sociais, o músico replicou trechos do texto de GG postados no Instagram e foi filmado por Paula Lavigne, sua esposa, vendo vídeos de João da Bahiana. Em seguida, foi publicado um vídeo em que Veloso é questionado por Lavigne sobre o que achou da nota da Rolling Stone.
“Prato e faca em um samba de roda da Bahia é obrigatório, instrumento tradicional. Não só na Bahia. João da Bahiana e aqui no Rio ainda tem gente que toca em área de samba mesmo. Agora uma revista de música pensar que o prato e faca foi inventado na hora porque Moreno não tinha instrumento, é uma maluquice, uma ignorância inacreditável”, diz Caetano. Na legenda do vídeo, ele reafirma que não há nada de inusitado no uso do instrumento e que “qualquer profissional que se propõe a falar sobre música se propõe a falar sobre música deveria ter o aprofundamento necessário para tratar de nossa cultura com mais cuidado e respeito.
GG fala em uma ignorância e surdez histórica da crítica cultural baseada no sudeste das culturas populares do Nordeste, em especial as negras e suas estratégias de sobrevivência cultural, empenhada na criação de tecnologias a partir dos cenários socioeconômicos não tão favoráveis vividos. Ele ressalta que se fala em uma empatia para uma jovem jornalista, apesar da matéria não ser assinada, mas há também uma agressão as senhoras do samba de roda e sua contribuição de décadas.
"A gente precisa entender que enquanto jornalistas e críticos, escrevemos uma posição de poder, decidimos qual história vai ser contada. Se a gente omite a participação dessas pessoas, mulheres negras do Nordeste, na formação da identidade cultural brasileira, que chega até o Globoplay, é um apagamento histórico muito grave e violento. O pior de tudo nessa história é como o jornalismo não consegue receber críticas, porque se blindou e não consegue fazer uma autocrítica. Não vi uma errata que fosse, trataram como se não fossem com eles", conclui GG. O comentário sobre o prato e faca na Rolling Stone foi apagado e o termo "caseiro" foi retirado da matéria da Folha.
ATUALIZAÇÃO: A revista Rolling Stone Brasil publicou a seguinte nota do editor:
Logo no início da live, chamou a atenção dos fãs no Twitter que assistiam ao aguardado show virtual de Caetano Veloso o fato de Moreno Veloso, filho dele, ter tocado o prato-e-faca, símbolo importantíssimo da história do samba de roda do recôncavo e da história brasileira, portanto.
Essa percepção foi incluída no texto acima de forma completamente equivocada e, assim que revisada, apagada. A Rolling Stone Brasil reconhece, lamenta profundamente o erro e pede desculpa a todos que se sentiram ofendidos com as palavras encontradas aqui, em especial (e em memória) à Dona Edith do Prato e àqueles que fizeram da cultura do prato-e-faca uma expressão musical fundamental da cultura do País.
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