Em seu trabalho, o artista e pesquisador Lino Arruda busca criar espaços nos quais as pessoas trans são protagonistas e podem se autorrepresentar, em oposição às práticas históricas que as colocam exclusivamente em posição de objetos de pesquisa. Seu projeto se alinha com o de artistas e intelectuais latino-americanos que têm construído redes alternativas pela expansão das formas de existir e se expressar, como fica evidente na HQ Monstrans: Experimentando Horrormônios, obra que ele vem desenvolvendo a partir de suas experiências com a transmasculinidade, lesbianidade e deficiência física (um acidente de carro acarretou na má formação de suas pernas).
Lino é um dos integrantes da mesa de abertura da sétima edição da Todos os Gêneros: Mostra de Arte e Diversidade, que este ano discute masculinidades e é transmitida nesta segunda-feira (24), às 19h, no site do Itaú Cultural. Na ocasião, junto aos outros convidados, abordará suas experiências com a construção da própria masculinidade. Além dele, participam Thiago Rosenberg, produtor do Itaú Cultural, como mediador; o jornalista Airan Albino (RS); e o escritor Marcelino Freire (PE). O poeta Miró participará com a leitura do poema que escreveu para a publicação da mostra.
Leia a entrevista completa com Lino Arruda:
JORNAL DO COMMERCIO - Lino, a mesa da qual você participa aborda as masculinidades através das múltiplas experiências dos participantes. Em uma entrevista, você falou do desafio que foi a construção da sua masculinidade sem referências, ao mesmo tempo em que também se preocupa em não deixar que, através da sua representatividade, exista uma normatização das várias vivências possíveis da transmasculinidades. Gostaria que você comentasse sobre esse processo e como teu trabalho no campo acadêmico e artístico ajudou na elaboração da sua perspectiva de masculinidade.
LINO - Acredito que a falta de referências de masculinidades dissidentes se dá devido à escassez de oportunidades que as pessoas gênero dissidentes no espectro da transmasculinidade (binárias e não-binárias) enfrentam para produzir conhecimento a partir de suas perspectivas. Tanto no âmbito acadêmico como na cultura hegemônica de uma forma geral é escassa a representação desse segmento da sociedade: as posições mais comuns que ocupamos são de objeto de pesquisa ou de participantes em representações elaboradas por outras pessoas (como, por exemplo, interpretando personagens trans em filmes escritos e dirigidos por pessoas cis). Me lembro, por exemplo, da primeira figura que vi que mais se aproximava da transmasculinidade: “Tonhão” (Cláudia Raia) no programa TV Pirata. Aquela representação era um alerta para crianças que, como eu, desejavam masculinidades desautorizadas. Tonhão foi apresentado como quem fez escolhas erradas, tornou-se assustador e já estava sendo punido. Identificar-se com Tonhão seria desejar algo que ia em contra de meus interesses.
O exemplo de Tonhão leva a questionar: Quem possui as ferramentas para contar as nossas histórias? Nos identificamos com a forma como estamos sendo representadas/os? Como essas imagens impactam nossa comunidade?
Atualmente em notícias, novelas e filmes a imagem do corpo trans* emerge como fenômeno contemporâneo, ou seja, aparece desalinhado da sua história e desvinculado de uma cultura própria. Somos representados como ávidos por adentrar os sistemas já existentes e incapazes de criar alternativas às estruturas que nos marginalizam. Essas representações são raramente elaboradas e/ou protagonizadas por travestis/trans*.
Argumento que no atual cenário político (em que nossas vulnerabilidades são acentuadas pela censura e pela elevação de grupos intolerantes), faz-se necessário também direcionar esforços para o interior da comunidade trans*, priorizando o fortalecimento de redes internas através de projetos que geram autorreconhecimento. Assim sendo, sensível ao fato de que fomos historicamente instrumentalizadas/os como objeto das produções acadêmicas, legislativas, culturais e bio-médicas, nos meus projetos acadêmicos e artísticos eu proponho uma inversão desse paradigma: analiso e crio proposições em que o trans (e em especial a transmasculinidade) é sujeito de seu próprio representar e, consequentemente, oferece perspectivas e estratégias representativas originais.
A necessidade de um olhar interno e que alimente a própria comunidade foi também a premissa da minha tese doutoral, na qual reuni e analisei autorrepresentações trans/travesti em zines latino-americanos. Nesse processo priorizei o trabalho de artistas e/ou teóricas/os trans e encontrei locais de identificação multifacetadas: representações que permitem derivações e hibridismos de si, as quais me inspiraram a criar a HQ Monstrans.
JC - O processo de criação de Monstrans tem sido compartilhado com o público através da internet. Como tem sido essa experiência e em que medida essa troca com seus leitores tem afetado a criação?
LINO - Ao compartilhar pequenos trechos dos quadrinhos e também vídeos contando sobre a temática que estou trabalhando tenho recebido mensagens principalmente de outras pessoas trans que se identificam de diferentes maneiras com o conteúdo produzido, e levo em consideração seus incômodos e também procuro exaltar os pontos de identificação. Tem sido uma oportunidade de estreitar laços com a comunidade, fazer novos/as amigos/as e aliadas/os, de criar redes e conhecer outros/as artistas trans. A parte mais gratificante de fazer um trabalho que propõe um olhar interno à comunidade trans, às vezes excessivamente codificado, é vê-lo reverberar e estimular outras pessoas a contarem suas histórias. Gosto de estar conectado com os anseios mais atuais da minha comunidade, com certeza essa cultura orienta e transforma o meu trabalho.
JC - A previsão de publicação do livro ainda é 2021? Situações e sentimentos advindos deste período de pandemia podem aparecer refletidas de alguma forma? Ainda nesse sentido, como tem sido sua produção no isolamento social?
LINO - Sim, por enquanto mantivemos, junto ao Itáu Rumos, o cronograma de lançamento da HQ “Monstrans: experimentando horrormônios” para julho-agosto de 2021. Entretanto, é possível que tenhamos que buscar novos locais para abrigar os eventos de lançamento do livro, tendo em vista que alguns centros autônomos e institucionais de apoio e de acolhimento às travestis e pessoas trans selecionados para essas ações têm passado dificuldades, especialmente em virtude da crise econômica que a pandemia acarreta. Aproveito a ocasião para mencionar as iniciativas da Casa 1, Casa Nem e Casa Chama, que solicitam incentivo e doação para dar prosseguimento ao trabalho basal de acolhimento e formação das camadas mais vulneráveis da comunidade travesti/trans.
Vejo que muitas/os artistas têm pensado em como o “novo-normal” será incorporado nos roteiros que estão sendo desenvolvidos (por exemplo, os personagens usarão máscaras? Como se cumprimentarão?). Temos o desafio de ainda não saber ao certo quais as configurações dessa nova realidade. Mas como o meu trabalho autobiográfico propõe uma revisitação da minha infância, da minha adolescência e do inicio da minha transição de gênero, os roteiros abarcam um período anterior à pandemia, por isso essa não será diretamente incorporada no roteiro.
Leia também: Documentário 'Revelação', da Netflix, aborda representatividade trans em Hollywood
Leia também: Artistas trans lutam por visibilidade e representatividade
A minha produção de uma forma geral se manteve dentro do cronograma, mas vivenciando esse período e as derivadas transformações e inseguranças, o trabalho foi impactado na mesma medida que eu fui sendo impactado: para estar mais próximo da minha mãe, acabei me mudando para a cidade onde eu nasci, que foi onde sofri a maior parte das violências lesbofóbicas que retrato na HQ. De certa forma fez sentido estar aqui revisitando o meu passado enquanto estou escrevendo sobre ele. Circular pela cidade ativa a memória de uma forma diferente: fui me lembrando dos lugares que frequentei, principalmente dos bares que nos expulsavam, dos protestos que organizamos e das redes e afetos que criamos.
Foi também uma oportunidade de estar mais próximo da minha família e coletar informações sobre episódios específicos que aconteceram durante a minha infância. Por exemplo, o meu pai me contou em detalhes sobre o acidente de carro que acarretou na má formação das minhas pernas, e pude ficcionalizar essa história de forma mais precisa no roteiro.
Um dos maiores desafios da quarentena tem sido a dificuldade de acesso aos tratamentos de saúde que preciso semanalmente (fisioterapia, acupuntura e quiropraxia). As instabilidades e anseidades emocionais que estamos vivenciando coletivamente acabaram estimulando episódios de dor crônica, que têm sido muito debilitantes e certamente deram um tom mais amargo a alguns trechos da HQ, especialmente as passagens em que conto sobre deficiência.
JC - Para você, a produção de quadrinhos está intrinsecamente ligada à vontade de contar histórias inspiradas em vivências reais, suas ou de terceiros?
LINO - Comecei a fazer quadrinhos em 2011, quando uma amiga me contou que por muitos anos achava que os passageiros do ônibus faziam o “sinal-da-cruz” quando ela entrava, pois de alguma forma sabiam que ela ser lésbica, e que somente depois se deu conta de que o ponto de ônibus ficava na frente de uma igreja. Achei essa historia tão representativa de uma experiência lésbica no campo social e tão diferente daquela representada, por exemplo, nas novelas (em que o foco é a relação lésbica, e não a subjetividade lésbica). Decidi fazer aquele quadrinho porque, naquele momento, me senti identificada com essa historia e achei que muitas pessoas também se sentiriam assim. Então de certa forma, além de produzir quadrinhos inspirados na minha vida, em situações que eu vivi e que também ficcionalizei, às vezes conto outras historias que reverberam no interiro das comunidades que pertenci e que pertenço.
É importante também frisar que os zines de quadrinhos que carregam a maior parte da minha produção são colaborativos, feitos por bissexuais, lésbicas e outras pessoas trans. Essa produção se pretende menos autoral e mais orientada para a comunidade, acarretando uma espécie de dissolução da figura da autoria.
A partir dessa experiência com o zine passei a dar workshops de edição da memória, contação de histórias e produção de zines em eventos feministas autônomos na América Latina e recentemente em diferentes universidades dos Estados Unidos. Há com certeza uma contaminação de vivências que é muito bem-vinda nesse processo criativo, desde que estabeleçamos princípios éticos (como, por exemplo, a co-autoria) para contarmos histórias que não nos pertencem.
JC - Como tem sido o trabalho com a Fracassando: Edições Precárias? O nome da distribuidora, inclusive, me lembrou o ensaio "A Arte Queer do Fracasso", de Jack Halberstam, que trabalha com essa ideia do desvio da ideia de sucesso de uma forma subversiva, em oposição à heteronormatividade e à cisgeneridade compulsórias, o que me parece uma perspectiva que se aproxima da que você imprime no seu trabalho.
LINO - Com certeza o Halberstam, com quem tive o prazer de dividir um grupo de pesquisa em 2016, foi um grande aliado teórico e uma referência para a minha transição e para o meu trabalho artístico (relembrando o pioneiro “Female Masculinities”, que li quando me identificava como lésbica). O autor conecta a contracultura dissidente ao fracasso, à perda, ao esquecimento, à descontinuidade e ao precário afirmando que a negatividade imbuída em nossos projetos são componentes praticamente intrínsecos à formação subjetiva dissidente: em vez de abdicar à marginalidade e de aspirar ao sucesso, à legitimidade e à normalização, muitas produções travesti/trans* contraculturais abarcam o fracasso que elas representam de qualquer forma.
A autora travesti chilena Claudia Rodriguez explica, na primeira página dos seus zines, que “essa é uma produção precária de autogestão, uma produção do fracasso, sem editorial.”. Acredito que o zine seja por excelência um suporte do fracasso no sentido de que seu formato implica a perda do conteúdo e a dificuldade de arquivamento: as páginas saem da sequência original ou simplesmente desaparecem, a fotocópia borra e corta alguns trechos do conteúdo (um convite ao improviso e à interpretação criativa), a matriz se dobra, molha e rasga durante o transporte etc. A dinâmica de vida desse tipo de objeto cultural é mais um elemento que impossibilitaria o enredamento de seu conteúdo na história oficial, a qual normalmente se afirma coerentemente organizada a partir da comprovação, do registro e do arquivamento. É interessante observar essas características analogamente às formas fragmentadas, orais, afetivas, pouco ou nada registradas e completamente desautorizadas através das quais as histórias das dissidências subalternadas sudacas persistiram, se transformaram e também se perderam ao longo do percurso.
O trabalho com a distribuidora Fracassando: edições precárias foi inicialmente o de encontrar, arquivar, traduzir e redistribuir produções autorais de lésbicas e pessoas trans. Ele foi essencial para o desenvolvimento da minha pesquisa doutoral, na qual organizei e analisei zines com foco em autorrepresentações travesti/trans que usam a figura do monstro. Eu costumava vender esse material em banquinhas de zines em eventos feministas e shows de punk. Agora quase já não monto mais banquinhas de zines e estou passando meu acervo para outras distribuidoras autônomas, como a Distro Dysca (https://distrodysca.milharal.org/).
JC - Você observa um fortalecimento nessa rede de produção e disseminação de conteúdos artísticos e intelectuais de autoria travesti/trans na América Latina? E especificamente no Brasil, como é o cenário?
LINO - Fui o primeiro intelectual trans do Brasil a ser contemplado com uma bolsa doutoral Fulbright, e me lembro que durante o processo seletivo argumentei que nunca tinha tido um/a professor/a trans, e por isso gostaria de estudar no primeiro instituto de estudos trans do mundo, sob orientação da Dra Susan Stryker. Durante essa experiência conheci milhares de teóricos/as trans de todo o mundo e acompanho desde então o crescimento dessa comunidade intelectual, que sempre existiu fora da academia, mas que agora começa a ocupar esse espaço com mais força.
Em outras palavras, vejo um crescimento e um fortalecimento das iniciativas autônomas/comunitárias que sempre existiram e simultaneamente, de maneira relacionada, vejo uma tímida incorporação dos trabalhos produzidos por pessoas trans nos canais autorizados de produção e disseminação de conhecimento.
Por exemplo, já começam a surgir alguns grupos de pesquisa exclusivos para acadêmicas/os trans, como o NETRANS (UFSC). Na UFBA há também uma série de iniciativas intelectuais que focalizam as autorias travesti e trans. Além disso, acompanho um crescimento do número de mestrandos/as e doutorandos/as trans e tenho sido convidado a integrar bancas de defesa de mestrado e doutorado que reiteram a necessidade de um membro transmasculino.
Acompanho também o surgimento de iniciativas como a companhia de circo Fundo Mundo, formada somente por travestis e pessoas trans. É pertinente também citar o CATS, um coletivo de artistas transmasculinos que reúne proponentes de todas as áreas da cultura.
Acho que é um momento de fortalecimento das iniciativas trans. Entretanto, acho necessário reiterar que na medida em que os membros desses grupos vão acessando os canais hegemônicos de produção de conhecimento precisam atentar para a responsabilidade que têm de abrir portas para dar oportunidade aos demais membros das suas comunidades, pois quem tem acesso a essas oportunidades e iniciativas pioneiras são geralmente as camadas menos vulneráveis da nossa comunidade.
Comentários