Quando tinha 14 anos, Elena Ferrante leu pela primeira vez Madame Bovary. Ela se identificou imediatamente com Berthe, a filha do casal principal, e passou a questionar se sua própria mãe já teria um dia pensado sobre ela, "é estranho como essa menina é feia", como o fez a personagem Emma Bovary. Ela conta em Frantumglia (Instrínseca, 2017), seu único livro de não-ficção, que esse trecho arrebatou-a de uma maneira transformadora.
Cerca de 50 anos depois nasceu então A Vida Mentirosa dos Adultos (432 pgs., R$ 59,90) seu mais novo romance, lançado simultaneamente em mais de 20 países - dentre os quais o Brasil, pela editora Intrínseca - no início deste mês.
O livro começa justamente com uma afirmação semelhante ao clássico de Gustave Flaubert e que, à primeira vista, parece ser meramente estética. Mas Ferrante decidiu deslocar o atrito para a relação pai e filha, algo novo em sua obra, e fazer desta afirmação a grande virada de chave na vida de sua protagonista.
"Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia. A frase foi pronunciada à meia-voz, no apartamento que meus pais, recém-casados, compraram no Rione Alto, no topo da Via San Giacomo dei Capri. Tudo - os espaços de Nápoles, a luz azul de um fevereiro gélido, aquelas palavras - ficou parado. Eu, por outro lado, escapei para longe e continuo a escapar também agora, dentro destas linhas que querem me dar uma história, enquanto, na verdade, não sou nada, nada de meu, nada que tenha de fato começado ou se concretizado: só um emaranhado que ninguém, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se contém o fio certo de uma história ou se é apenas uma dor embaralhada, sem redenção", escreve na primeira página.
A narradora é Giovanna que, na fase adulta, decide contar sobre os quatro anos mais conturbados de sua adolescência. Ela tem 12 anos quando escuta essa conversa. Pouco depois, descobre que, na verdade, estava sendo comparada em termos comportamentais com Vittoria, tia paterna que nunca conheceu e sobre a qual só obteve informações vagas e muito negativas.
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No ambiente intelectual da casa de Giovanna, onde os estudos são colocados em primeiro lugar e o dialeto napolitano é proibido, ter familiares que permaneceram no subúrbio, cumprindo atividades braçais e frequentando a igreja é o grande tabu.
Este fato vai desencadear rupturas brutais na vida de Giovanna, todos explorados com a maestria e potência narrativa características de Elena Ferrante, que mergulha novamente no melodrama com classe e inteligência. A separação dos pais, o estremecimento da sua relação com Andrea - o homem que ela passou a infância amando e admirando incondicionalmente -, a descoberta da sexualidade, de uma vida possível fora dos padrões paternos e a forma como ela passa a vivenciar os bairros napolitanos vão nortear A Vida Mentirosa dos Adultos.
Giovanna vai então em busca dessa tia, do outro lado de Nápoles. Ela precisar materializar esta feiura que, agora, também é dela, e tentar entender o porquê desses jogos de mentiras que parecem reger a vida adulta.
A cidade também tensiona os vínculos afetivos, provoca novos desejos e e anseios. Nápoles é mais do que palco do romance, se torna um personagem importante. O fato desta ser mais uma obra que aborda a difícil transição da adolescência para a fase adulta em uma personagem feminina, ambientada novamente em Nápoles, tem sido apontado por parte da crítica com um esgotamento temático e uma repetição de fórmula. De se questionar se esta crítica seria igualmente aplicada ao masculino...
É verdade que são temas conhecidos pelos leitores da enigmática escritora italiana, já muito bem trabalhados na Tetralogia Napolitana (A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida). Mas a habitualidade aqui não é sinônimo de mesmice. Opinião, esta, ratificada pela psicanalista, crítica literária e autora do livro Elena Ferrante - Uma Longa Experiência da Ausência (Claraboia, 2020), Fabiane Secches.
"Se o projeto tem fôlego, se é bem executado, isso não é necessariamente algo negativo. Acho que as perguntas que devemos fazer são: o novo romance tem qualidade literária que o sustente como uma obra autônoma? A meu ver, a resposta é sim. Sem dúvida, Ferrante revisita temas, cenários e procedimentos estéticos com frequência, mas a mim parece que delimita cada vez mais um campo autoral de modo positivo", pontua.
A "Febre Ferrante" pelo mundo
A Vida Mentirosa dos Adultos: chegou às livrarias italianas em novembro de 2019 após um hiato de cinco anos desde o último livro da autora. A noite de lançamento foi um evento que há anos a literatura não provocava, com vitrines das livrarias cobertas por cortinas, filas enormes e contagem regressiva.
O fenômeno decorrente da popularidade mundial de seus livros ficou conhecido como Febre Ferrante. As razões para tal popularidade envolve aspectos diversos, desde sua abordagem literária única, inteligente e crua sobre temas delicados, a como ela consegue, ao falar de um lugar tão específico que é Nápoles, de questões universais e atemporais.
Mas também há o inegável auê em torno de sua real identidade. O fato de, mesmo após tanto sucesso, Elena Ferrante continuar escolhendo o anonimato é fruto de muitas especulações. "Se vivemos na tal sociedade do espetáculo, para muitos talvez seja difícil entender a posição de uma autora que, em certa medida, se recusa a fazer parte de um jogo pré-estabelecido, ou, ao menos, uma autora que reinterprete e subverta algumas regras", analisa Fabiane.
E as expectativas pela série anunciada pela Netflix deste romance já estão altas para os ferranters. Assim como a esperança que, em breve, um novo livro também seja anunciado. É estranho como são belas as narrativas dessa autora.
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