PROSA

A escrita de Elena Ferrante e o fascínio pelo que é ausente

A autora italiana foi até alvo de um repórter investigativo que foi atrás de sua identidade

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 05/11/2016 às 6:19
Ronaldo Câmara/Editoria de Arte
A autora italiana foi até alvo de um repórter investigativo que foi atrás de sua identidade - FOTO: Ronaldo Câmara/Editoria de Arte
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Um autor, explica a italiana Elena Ferrante, é apenas a soma das estratégias expressivas que moldam um mundo inventado, um mundo concreto que é preenchido por pessoas e eventos. “O resto é vida privada comum”, sintetiza a escritora. Talvez o nome mais aclamado da literatura italiana recente, ela criou em sua trajetória – principalmente a partir da sua tetralogia napolitana, iniciada com o romance A Amiga Genial – uma junção incomum de aclamação da crítica e do público. 

Na Itália, a autora vendeu mais de um milhão de exemplares e, nos países que falam inglês, mais 2,6 milhões de livros. Nas suas narrativas, aborda de modo singular o universo das amizades femininas, da maternidade, das pressões da sociedade, com uma prosa memoriosa, reflexiva, autocrítica e, antes de tudo, profunda.

Tudo isso é ainda mais impressionante pelo simples fato de que Elena Ferrante nunca existiu: ela é apenas um pseudônimo. Ao longo do tempo, o fascínio pela sua obra misturou-se com o interesse pelo segredo da sua identidade. Ferrante se manteve distante, dando entrevistas por e-mail e apenas mencionando um pouco do seu passado napolitano em entrevistas. A partir das experiências de suas personagens, leitores, críticos e até pesquisadores projetavam sua vida. Em tempos de profusão de eventos literários, do excesso de imagens e da promoção da autoficção, que confunde vida e personagens, quem ousa se manter anônimo, escondido através de um nome?

No início do mês passado, um jornalista italiano, Claudio Gatti, anunciou ter descoberto, por meio dos pagamentos da editora italiana de Ferrante, a identidade: ela seria a tradutora Anita Raja. O dado causou principalmente indignação entre os leitores dela: por que revelar um segredo que não faz mal a ninguém? No artigo, o repórter se justifica dizendo que “o sucesso impressionante dos livros dela fizeram a busca por sua identidade virtualmente inevitável” e ressaltou que ela, ao dar informações pessoais sobre a vida de Ferrante, “alimentou o frenesi, a curiosidade sobre a vida pessoal dela (...) e depois passa a reclamar quando alguém descobre as informações reais”. No fim, parece ter feito mais uma defesa do jornalismo de fofocas do que da relevância da sua investigação.

Em sua entrevista para a Paris Review, Ferrante conta que, quando começou a publicar, nos anos 1990, ela queria simplesmente evitar os “rituais da publicação” – o pseudônimo era uma opção pela timidez. “Mais tarde, eu comecei sentir hostilidade em relação à mídia, que não presta atenção para os próprios livros e valoriza um trabalho de acordo com a reputação do autor”, explica. Não queria ser mais uma a vender a sua imagem mais do que seus livros.

Claro que o mistério em torno de Ferrante se tornou também um tanto publicitário com o tempo, mas a raiz desse interesse sempre estaria, por fim, na força de sua prosa. “O que eu entendi foi que remover o autor – como ele é entendido pela mídia – do resultado da sua escrita cria um espaço que não havia ali antes. A partir de Os Dias de Abandono (lançado em 2002), me parece, o vazio criado pela minha ausência foi preenchido pela própria escrita”, opinou. De certa forma, é inevitável tratá-la também (afinal, Elena é o nome da narradora da sua tetralogia) como uma personagem, um outro recurso de uma ficção. 

“Se a autora não existe fora do texto, dentro do texto ela se oferece, se adiciona conscientemente à história, mostrando-se mais verdadeira do que poderia ser em fotos de um suplemento dominical, no lançamento de um livro, num festival literário, em uma transmissão televisiva, recebendo um prêmio literário”, disse Ferrante a Paris Review.

AUSÊNCIA

Ferrante não é, de forma alguma, um caso único na literatura mundial. A escrita está cheia de casos de autores célebres que não se prestam a aparecer, desde os que simplesmente são reclusos, como Raduan Nassar, Rubem Fonseca, J. D. Salinger e Thomas Pynchon, até os que realmente se esconderam atrás de outros nomes, como George Elliot (Mary Ann Evans), Robert Galbraith (pseudônimo de J. K. Rowling já revelado, mas que continua publicando), JT LeRoy (nome criado por Laura Albert, que relatava os abusos que sofreu na infância e a levou até a ser acusada de falsidade ideológica) e, no Brasil, entre muitos outros, Suzana Flag e Mirna – ambas forjadas por Nelson Rodrigues para assinar folhetins e correios sentimentais. 

Vários deles despertam algum tipo de fascínio nos leitores e na mídia – como se a recusa a participar com sua persona da divulgação das obras tornasse qualquer pequeno rastro ou pista deles mais valioso. Para a escritora e poeta Micheliny Verunschk, que lançou neste ano Aqui, no Coração do Inferno (Patuá), o contexto atual é ainda mais obcecado com isso – um sintoma de um mundo em que o autor é exposto demais. “A ascensão das redes sociais e a consequente facilidade a figuras antes pouco acessíveis está na base de um tipo de investigação como essa, uma violência que tem suas raízes na obsessão pelas celebridades que acabou matando a Princesa Diana, por exemplo. Gosto da palavra sintoma porque dá bem a dimensão do quanto é doentio essa devassa, essa perseguição”, aponta.

Como leitora de Ferrante, ela conta que não sentia vontade de conhecer a identidade da autora. “ Pelo contrário, me fascinava mais o mistério dessa identidade, até porque ela faz esgarçar os limites entre o real e a ficção ao colocar seu ‘nome’, Elena, como nome de uma das protagonistas da trilogia napolitana. Isso sim me parece maior que essa identidade revelada por meios tão canalhas”, continua. “Nunca escrevi sob pseudônimo, mas acho admirável quem o faz da forma que Elena Ferrante o fez, como recurso para ampliar a máquina narrativa”.

O escritor Sidney Rocha, que lança neste mês o volume de contos Guerra de Ninguém (Iluminuras), lembra que pseudônimos são tão antigos quanto os primeiros textos escritor. “A começar do livro mais lido no mundo: a Bíblia. Quem é o seu autor? Ninguém sabe ao certo quanto à maioria dos textos ali postos pela tradição religiosas e os especialistas. Estão assinados, e isto basta. Mas não poucos daqueles nomes são postos em dúvida, não somente quanto a serem mesmo os autores, mas até da existência de homens reais com os nomes tais”, pondera. “Sem falar que em último caso, o verdadeiro autor seria Deus. Mas Deus tem dezenas de nomes, conforme a compreensão judaica, e que mesmo reduzindo a três, o cristianismo não eliminou o seu caráter heteronímico”.

Para ele, que já usou assinaturas diferentes na sua adolescência, “impulsionado por poetas” e Machado de Assis, o gosto pelo pseudônimo “extrapola a literatura de ficção e não foi inventado, de modo nenhum, em nosso tempo”. “Mas, já que estamos numa falsa polêmica, que tal aceitarmos a ideia de que todos os autores assinam suas obras com pseudônimos, a começar daqueles que nos dão quando nascemos, e com os quais assinamos as obras que escrevemos?”, questiona.

O fascínio pela identidade de um autor é, para ele, o mesmo que move os leitores atrás de fatos pessoais e biografias. “A verdadeira, e mais secreta razão disso tudo, é uma ideia tão velha quanto a humanidade: de que ‘descobrindo’ quem é o autor, de como se chama, saberemos os seus segredos”, comenta. “A pergunta mais inquietante talvez seja outra: por que as pessoas consideram legítimo que os autores inventem os nomes dos seus personagens e suas vidas, mas não que façam o mesmo consigo. Seja qual for a resposta, o fato é que a visão jornalística sobre a literatura, que reflete a do senso comum, continua a ser, noutras palavras, muito romântica”, encerra Sidney Rocha.

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