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Dia da Consciência Negra: a importância do contato com a negritude ainda na infância

Diante das diversas violações sofridas pelo povo preto ao longo de sua trajetória, o racismo fez e faz com que muitas pessoas dessa raça não se identifiquem como tal. Entenda como o negro pode ser caracterizado e a importância do tema fazer parte da infância dessa população

Bruna Oliveira
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Bruna Oliveira
Publicado em 20/11/2020 às 10:16 | Atualizado em 20/11/2020 às 13:04
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Pautas raciais sempre foram assuntos dentro do ambiente familiar de Matias, filho de Jaciana - FOTO: CORTESIA

Marginalizada dentro de uma sociedade composta por um racismo estrutural, a população negra brasileira carrega consigo uma trajetória de violências sofridas desde a época em que era escravizada até os dias atuais. Nesse processo de violações, a tentativa de apagamento da raça fez e faz com que muitas pessoas, por possuir um tom de pele mais claro, não se enxerguem como tal. Mas o que define uma pessoa como negra e qual a importância dela reconhecer a sua negritude ainda no início da vida? Nesta sexta-feira (20), Dia da Consciência Negra, o JC preparou uma reportagem com especialistas que conversaram sobre o assunto.

Para entender-se como um ser humano negro numa população miscigenada como a brasileira é necessário refletir sobre alguns pontos que transpõem a cor da pele. “Se a pessoa tem dúvidas se é negra ou não, deve levar três fatores em consideração: no primeiro, ela deve avaliar se já sofreu algum tipo de racismo, como as pessoas a enxergam; já no segundo ela deve analisar a sua experiência de vida, visto que a maioria das pessoas negras são pobres; no terceiro fator é importante que ela faça uma leitura do seu corpo e identifique os fenótipos e características da raça negra, como a cor da pele, lábios grossos, formato do nariz e outros”, explicou a antropóloga Izabel Accioly.

Em 2019, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que 56,10% dos brasileiros se consideram pretos ou pardos, estando estes últimos inclusos dentro da população negra. Apesar dos dados revelarem que a maioria dos brasileiros se veem como pretos, é necessário lembrar que a raça passou por várias discriminações, entre elas o branqueamento que, entre os séculos XIX e XX, consistiu na elite querer clarear a população brasileira por meio da miscigenação. A ideia era que, após várias gerações, a raça negra deixasse de existir, ou seja, que ela fosse apagada.

“O branqueamento é uma estratégia de dominação da branquitude que se dá pela construção da classificação entre brancos e negros. Branco sempre sendo visto como algo positivo e negro sempre sendo visto como negativo”, disse Izabel sobre o tema.

Com a continuidade da raça negra, mesmo diante da miscigenação, uma outra estratégia foi estabelecida para a dominação da branquitude: o colorismo. Conhecido também pigmentocracia, o colorismo significa que, de forma mais simples, quanto mais pigmentada a cor da pele do indivíduo, mais exclusão e preconceito ele irá sofrer. “O colorismo é uma estratégia da branquitude para catalogar, dividir e dominar melhor as pessoas negras deste país. Pessoas brancas também têm variações de cor dentro da raça, mas não classificam os brancos pela cor de pele, classificam os negros”, declarou a antropóloga.

Dentro deste contexto é possível entender o motivo pelo qual o professor de música Luan Lima, de 24 anos, “odiava” o seu cabelo crespo, assim como seu nariz e boca. “Na infância e adolescência eu torcia para que inventassem um produto que deixasse o cabelo liso para sempre. Eu achava que o meu cabelo era um castigo”, desabafou o professor. Além disso, quando se imaginava na fase adulta, Luan, ainda criança, se via como um homem branco.

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O professor de música Luan Lima não se considerava negro na infância - CORTESIA

Esse auto ódio sofrido por Luan é algo comum entre a população negra e é consequência do branqueamento, visto que o padrão de beleza estabelecido pela sociedade é o branco. Sendo assim, para serem melhores aceitas, muitas pessoas pretas alisam seus cabelos, tentam afinar seus traços e recorrem a várias formas de branqueamento até mesmo de forma inconsciente. O grande problema dessa questão é que, apesar das tentativas, esse padrão branco nunca será alcançado e irá gerar uma série de frustrações.

Morador do bairro de Campo Grande, na Zona Norte do Recife, Luan cresceu em grupo familiar em que ele era a pessoa que tinha o tom de pele mais claro. Diante disso, ele não se via como uma pessoa negra, no entanto, com o tratamento diferenciado recebido na escola, também tinha noção de que não era branco: achava que era “moreno” ou “qualquer outra nomenclatura”.

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O processo de reconhecimento da negritude de Luan se deu de forma lenta. O primeiro contato se deu ao assistir séries de televisão, como “Eu, a Patroa e as Crianças” e “As Visões da Raven”, em que ele sentiu uma aproximação com os personagens, entretanto, ele ainda não conseguia se reconhecer como tal.

Segundo Izabel, é muito difícil se assumir enquanto negro numa sociedade quando a palavra em si é conhecida durante a vida toda como algo negativo. “O negro é sempre o mal, o feio, o sujo, enquanto o branco é bom, bonito, limpo, puro. A palavra ‘denegrir’, que é utilizada no sentido negativo, significa estar tornando negro, como se isso fosse algo ruim”, explicou.

Além da palavra ‘denegrir’, o vocabulário brasileiro é composto por diversas expressões de cunho racista, como se referir a uma mulher negra como “mulata” (produto do cruzamento de uma mula com um cavalo) ou dizer que uma pessoa preta é “da cor do pecado”. Expressões como “mercado negro”, “magia negra”, “lista negra” e “ovelha negra” e tantas outras também não ficam fora da lista, por isso, o importante é que, a partir desse conhecimento, as pessoas comecem a extingui-las do seu vocabulário.

Mesmo sem reconhecer a sua negritude ao longo da infância e adolescência, quando começou a cursar o ensino superior, Luan se encontrou. “Comecei a ter contato com outras pessoas negras, passei a ver vídeos sobre o assunto e a partir daí fui me descobrindo até conseguir reivindicar minha negritude e aceitar quem eu sou. Antes eu me enxergava como a pessoa mais esquisita da face da terra, enquanto hoje enxergo minha beleza interior e exterior”, concluiu o professor de música.

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Depois de adulto, Luan passou a se reconhecer como um homem preto e revela ser mais feliz - CORTESIA

Contato com a negritude na infância

Para estar presente no meio do poder social, a vida de uma pessoa negra idealizada por uma padrão branco carrega consigo, como já dito antes, uma trajetória repleta de frustrações e anulações. Por isso, de acordo com a psicóloga infantil Deyne Cavalcanti, é de grande importância que o indivíduo tenha contato com a sua negritude ainda na infância.

“O fato dele se ver como uma pessoa negra ainda quando criança vai ajudá-lo a se desenvolver como pessoa e promover uma estrutura emocional diante desse reconhecimento. Quando isso não acontece a pessoa pode desenvolver na fase adolescente ou adulta psicopatologias, como depressão e ansiedade”, disse a psicóloga.

Apesar de uma criança pequena não entender o que é racismo e discriminação, pode ser que ela se depare com essas violências em determinados ambientes, principalmente na escola, que é onde ela pode não encontrar elementos que a representem. Cabe a família, então, cobrar da instituição materiais que a representem. Além disso, essas introduções da negritude também devem ser feitas em casa, a partir dos dois anos de idade, que é quando a criança começa a ter uma percepção de que é uma pessoa, de acordo com Deyne.

“A família deve introduzir na vida dessas crianças bonecas e bonecos pretos. Também é muito importante que elas tenham acessos a livros com personagens negros, tenham caixinha de lápis de colorir com diversas cores que representam os tons de pele. Assim, ela vai estar inserida dentro do contexto negro e irá se desenvolver dentro desse ambiente de identidade”, orientou a profissional.
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Histórias infantis com temáticas raciais e/ou com personagens pretos fazem parte do dia a dia de Matias, de 9 anos, morador do Centro do Rio de Janeiro. Mas a diversão não para por aí: o menino também curte teatro, fotografia e, como qualquer criança dos tempos atuais, muita tecnologia.

Criado pelos pais para ser o que quiser, Matias viralizou nas redes sociais em 2016, quando tinha apenas 5 anos, após tirar uma foto segurando um boneco do personagem Finn, de Star Wars, interpretado pelo ator John Boyega. Na ocasião, ele representou várias crianças negras do Brasil, que em meio a tantos bonecos brancos dentro de lojas de um shopping achou “um filho” parecido com ele.

Já nessa época Matias estava inserido dentro do contexto negro, isso porque pautas raciais sempre foram recorrentes dentro da casa em que vive com os pais. “Eu e o pai dele somos educadores, então ele tem crescido ouvindo a gente falar sobre isso no almoço, no jantar, faz parte do cotidiano dele. Expliquei que a negritude, ser preto e ter o cabelo crespo é bonito”, declarou a empresária Jaciana Melquiades, de 38 anos, mãe do menino.

A infância de Jaciana, por sua vez, já foi diferente. Preta, ela cresceu na Baixada Fluminense e, devido à vida simples, costumava brincar na rua e no quintal de casa. Bonecas ela só tinha duas, ambas brancas. Na sua época, não havia bonecas negras.

“Eu brincava com essas bonecas e colocava uma toalha na cabeça para o cabelo ficar grande. Eu vejo a infância do Matias muito diferente da minha, porque ele tem uma noção de ‘pertence’. A falta de representatividade impactou bastante na forma em que eu me desenvolvia”, desabafou Jaciana, que contou ser uma criança tímida e vergonhosa, oposta ao Matias, que é super falante.

 

 

A geração de Jaciana, assim como a geração dos anos 1990 cresceram sem referencial negro. Na televisão, as pessoas brancas sempre estamparam novelas como protagonistas, comerciais como sinônimo de beleza, enquanto as pessoas negras eram sempre as suas serviçais. Filmes como “A Princesa e o Sapo” e “Moana” ainda não haviam sido lançados pela Disney.

“Atualmente as pessoas têm atentado para a identificação com a cor de pele, com o cabelo, se o personagem vive em um ambiente semelhante ao do negro, mas nos anos 90, por exemplo, as crianças cresceram vendo princesas brancas e super heróis-brancos, com traços diferentes dos seus”, explicou a cientista social Nathielly Ribeiro.

Segundo a especialista, a geração atual tem debatido o racismo de forma diferente da anterior. No entanto, o processo de integração com a sociedade ainda será demorado. “É importante lembrar que a integração do negro com a sociedade nunca aconteceu, ela sempre foi problemática. O mapa da fome nem sempre tem código de endereço postal, mas tem cor”, disse.

Com o objetivo de incentivar crianças negras a se divertirem com brinquedos educativos levando em consideração a representatividade, a mãe de Matias, Jaciana, transformou a sua experiência pessoal, em conjunto com a maternidade, em empreendedorismo. Com isso, ela criou a empresa Era Uma Vez, que conta com bonecas e bonecos de pano pretos. “Eu converso com o Matias, para que ele veja a importância que ele tem no mundo, e mostro que a empresa só existe por causa dele, que ele pode ser o que ele quiser”, finalizou.

 

 

“Quero ser referência para as crianças pretas das comunidades”

O afastamento social trazido pela pandemia do novo coronavirus obrigou muita gente a ficar em casa. Há quem tenha optado por se dedicar à gastronomia, outros a fazer exercícios de meditação ou praticar atividades físicas, mas o artista visual Jeff Alan, de 29 anos, morador do município do Barro, na Zona Oeste do Recife, preferiu aproveitar o período para se conectar com sua ancestralidade preta e expressá-la em seu trabalho.

“Quando estava isolado pensei que estava passando pelo pior momento da minha vida como artista. Parei para olhar para as pessoas à minha volta, a pensar na minha avó, minha bisavó e parentes que se foram. Com isso, coloquei em prática uma vontade já antiga que era retratar pessoas pretas em meu trabalho”, afirmou o artista que tem usado a pintura como expressão do orgulho de sua raça e também como forma de protesto pela violência vivenciada pelo povo negro diariamente.

Com cores vibrantes, a arte de Jeff estampando rostos, traços e cultura negra tem sido o maior sucesso de sua carreira e percorrido vários lugares do Brasil, seja por meio de telas ou pinturas em paredes e muros de comunidades. A intenção do artista, além de colocar em prática o sonho de trabalhar com a arte, que existe desde a infância, é influenciar as pessoas que acompanham a sua carreira.

“É uma pessoa preta pintando pessoas pretas. Quero que elas vejam que se eu consegui, elas também podem fazer o mesmo. Quero ser referências para as crianças pretas das comunidades, para que elas não possam abandonar os seus sonhos por não ter em quem se espelhar”, disse.

 

 

Presente num cenário artístico normalmente conquistado por brancos, Jeff, que contempla tanta gente com a beleza de sua arte, por inúmeras vezes se deparou e ainda se depara com a figura horrorosa do racismo. A princípio, o racismo sentido foi na faculdade, quando alguns colegas de classe começaram a fazer piadas de cunho racial. Depois, antes de viver apenas da arte, passou por trabalhos onde percebeu que o negro normalmente ocupa o lugar dos serviços menos remunerados e com menor prestígio que as pessoas brancas. Atualmente, como artista, o racismo se revela de diversas formas, sendo a mais comum não sendo considerado o artista.

“Já aconteceu de eu estar pintando sozinho e as pessoas me confundirem com o ajudante do artista, além de tomarem um choque quando revelo que o artista sou eu. Quando vou fazer uma entrega de alguma arte em apartamentos localizados em locais mais nobres sempre sou tratado mal na portaria”, desabafou.

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O artista visual Jeff Alan já foi confundido como ajudante do artista, apenas pela cor de sua pele - REPRODUÇÃO/INSTAGRAM

Para a cientista social Nathielly Ribeiro, se a maioria da população brasileira é composta por pretos e pardos, essas pessoas devem ser maioria dentro dos espaços de poder também.

É preciso que existam iniciativas de políticas públicas para que a população negra ocupem os locais de poder, como maioria, porque eles são maior parte do país. É importante que haja um movimento de reparação histórica, mas só isso não basta, a população não deve apenas preencher cota e ser a maioria dentro dos presídios”, disse.

Em outubro, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que aponta que dos 657,8 mil presos em que há a informação da cor ou raça disponível, 438,7 mil são negros, ou seja, 66,7%. Os dados são referentes ao ano de 2019.

Diante de todos temas abordados na matéria, é possível entender que, atualmente, a questão racial tem sido inserida em debates que promovem uma conscientização racial maior diante da população negra. No entanto, as violações sofridas por essas pessoas, constatam que "a carne mais barata do mercado (ainda) é carne negra", o que precisa ser mudado com urgência. 

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O professor de música Luan Lima não se considerava negro na infância - FOTO:CORTESIA
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O artista visual Jeff Alan já foi confundido como ajudante do artista, apenas pela cor de sua pele - FOTO:REPRODUÇÃO/INSTAGRAM
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Depois de adulto, Luan passou a se reconhecer como um homem preto e revela ser mais feliz - FOTO:CORTESIA

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