O pop não poupa ninguém, nem mesmo - ou muito menos - Clarice Lispector. Autora de livros essencialmente existencialistas mas de linguagem simples e acessível, desde sempre sua obra passeia tanto pelo eruditismo da academia quanto pela popularidade de um público leitor abrangente. E ela sabia bem dessa idiossincrática característica.
Na entrevista concedida a Julio Lerner alguns meses antes de morrer, ela relata um episódio curioso relacionado ao romance A Paixão Segundo G.H (1964): um professor de português lhe contou que havia lido a obra quatro vezes e continuava sem entender do que se tratava mas, no dia seguinte,uma jovem de 17 anos visitou-a e confessou que era seu livro de cabeceira.
Neste próximo dia 10 é celebrado o centenário de Clarice e o legado de sua obra permanece vivo sob formas agora ainda mais plurais, alvo até de uma pequena disputa literária no ambiente virtual. É que desde a popularização das redes sociais e das ferramentas de busca online, perfis especializados em divulgar frases escritas por Clarice Lispector viralizam.
Basta uma procura rápida no Google pelo nome de Clarice Lispector que a primeira opção do preenchimento automático é o complemento "frases". "Liberdade é pouco, o que eu desejo ainda não tem nome" sem dúvidas está o top 3 das aspas claricianas mais compartilhadas. Esta, de fato, foi escrita por Clarice Lispector, mas muitas dessas frases reproduzidas ad infinitum nas redes não são de sua autoria. Outras são, mas reescritas por cima de fotografias de pássaros voando, crianças segurando balões ou nuvens em forma de coração se revelam um tanto fora de contexto.
Parece haver um certo fetichismo pela figura e pela literatura de Clarice, opinião da qual o professor e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFPE, Thiago Soares, corrobora. “Tirar algo de seu contexto é muito característico da dinâmica das redes sociais. Essa questão passa também pelo debate da autoria, da não materialidade. E esse fetiche passa pelo tema do autoconhecimento, da cultura da inspiração e da auto-ajuda, que são muito fortes neste ambiente. Não é a toa que os dois escritores fetiches nas redes são justamente Clarice Lispector e Caio Fernando de Abreu”, avalia.
No Instagram e no Twitter perfis inteiramente dedicados a publicar frases de Clarice se multiplicam diariamente, como se fossem repositórios para legendas de fotografias futuras dos seguidores. Na maioria das vezes é complicado definir quais são verídicas e quais pertencem a outros autores pois não há o crédito do livro. Pesquisadores acadêmicos e leitores mais sisudos costumam não apreciar essa reapropriação da imagem da escritora.
Mas para Benjamin Moser, biógrafo da autora (Clarice, Companhia das Letras) , profundo conhecedor e admirador de sua obra, ela teria adorado esse fenômeno. “Ela falava que sua produção iria continuar depois que ela morresse e isso está acontecendo! As pessoas a colocam como autora de frases que ela nunca publicou, mas tenho certeza que ela teria achado isso tudo muito divertido. De certa forma ela continua sendo reescrita mais de 40 anos após sua morte”, aponta.
“Sua grande fama vem, inclusive, depois. Em vida ela vendeu pouco, era lida por um círculo na verdade pequeno. Ela foi muito respeitada e resenhada, sim, mas vendia apenas centenas de exemplares quando lançava um livro. Mas ela sabia do tamanho do legado que estava deixando, chegou a falar sobre isso com sua irmã Tania.”
O pesquisador em teoria literária e professor do departamento de Letras da UFPE, Flaviano Maciel Vieira, também vem acompanhando essa dinâmica nas redes. Para ele, ver frases melosas assinadas com o nome da escritora causa um estranhamento, mas também avalia a sua obra e o espírito de suas histórias como universais.
“Clarice escreveu para todos na medida em que ela dá um mergulho na sua própria interioridade para sondar, buscar e escavar sua intimidade. Não existe em sua escrita uma tentativa de erudição, pelo contrário. Ela consegue nos guiar para meandros de sua mentes, por questões místicas, religiosas, antropológicas. Não tem como sair imune à literatura de Clarice”, diz.
E na terra de ninguém que é a internet, essa imunidade se torna ainda mais inexistente. “A cultura pop capta de tudo mas também costuma esvaziar de sentidos certas figuras e suas trajetórias, como um dos casos mais famosos que é o da imagem de Che Guevara, a partir do hiper compartilhamento”, observa Thiago Soares.
Outros exemplo de artistas célebres que, décadas depois de morrerem tiveram suas imagens de certa forma fetichizadas nas redes são Frida Kahlo, Marilyn Monroe e Audrey Hepburn, só para citar algumas.
Talvez Clarice Lispector seja então muito mais uma diva, um ícone desse lado mais lúdico do movimento dinâmico e over das redes, do que uma vítima.
O efeito colateral positivo do compartilhamento em massa de seu nome e de sua imagem é que gerações mais jovens cheguem até seus livros. Nas redes sociais mais do que em qualquer outro lugar, "ninguém tá salvo (...) O pop não poupa ninguém."
Comentários