Literatura

Uma reflexão sobre as fragilidades humanas no livro Kramp, de María José Ferrada

O romance foi publicado no Brasil pela editora Moinhos, que tem feito um relevante trabalho de aproximar os brasileiros dos escritores latino-americanos. A Moinhos acabou de completar 5 anos de história

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Adriana Guarda

Publicado em 13/05/2021 às 14:57 | Atualizado em 31/05/2021 às 16:23
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Meu pai foi vendedor nos anos 1980. Percorria as cidades do Nordeste brasileiro, em um fusca bege, vendendo medicamentos da alemã Merck às farmácias. Sabia de cabeça os nomes de dezenas de remédios e para quê serviam. Quando ele chegava em casa, eu era a primeira a ouvir o motor do carro e sair em desabalada carreira para abraçá-lo. Voltava contando as aventuras da viagem, sempre exagerando para tornar as histórias surpreendentes.

Ler Kramp - romance autobiográfico da chilena María José Ferrada me trouxe essas recordações. Publicado no Brasil pela editora Moinhos, o livro traz - antes de tudo - uma homenagem aos caixeiros-viajantes, ofício do pai da autora. Na curta narrativa, ambientada no Chile de Pinochet, cabem, ainda, temas sensíveis: afetos, relações entre pais e filhos, fragilidade humana e precariedade na convivência entre governo e população.

 

Protagonista e narradora da história, M, uma menina de 7 anos, consegue convencer o pai, D, a acompanhá-lo nas suas andanças como caixeiro-viajante. Dentro de um carro velho, e carregando sua maleta de couro preta, D vendia pregos, martelos, serrotes, maçanetas e olhos mágicos para portas da marca Kramp, em lojas de cidades e vilarejos vizinhos. A narrativa de Ferrada nos faz sentir como se estivéssemos sentados dentro do Renaut R4 de D, acompanhando de perto as aventuras das viagens.

M decidiu que queria ser ajudante de caixeiro-viajante quando ouviu a história da alunissagem pela primeira vez. D costumava dizer que com determinação e o traje adequado tudo era possível, numa referência ao momento em que viu Neil Armstrong (1961) pisar na Lua. Dizia que toda a vida tem a sua alunissagem, aquele momento mágico de pousar na Lua (ou conseguir o que se deseja conquistar). Quando ouviu isso, M lustrou seus sapatos de verniz, vestiu um vestido verde e tratou de convencer o pai.

A partir daí, o leitor vai se envolver com a vida pícara dos caixeiros-viajantes, figuras que precisavam vender seus produtos a todo o custo para ganhar dinheiro e que estavam sempre esperando pelo final do mês. A regra para um vendedor que chegasse a um vilarejo era procurar a cafeteria central e o hotel onde se hospedavam os outros caixeiros-viajantes. Daquela forma se tornavam uma espécie de "família flutuante". M passou a fazer parte daquele mundo masculino e politicamente incorreto para os padrões atuais.

Os anos 80 foram uma época de muito tabaco. Quem não tragasse diretamente um cigarro estaria inalando a fumaça, involuntariamente, nos restaurantes, cafeterias e em outros espaços permissíveis. A capa da edição brasileira do livro chama atenção por trazer uma criança fumando.

"As cafeterias eram um sol particular e, se alguém tivesse olhado por baixo da mesa, teria visto muitos sapatos pretos exageradamente engraxados, maletas e um par de sapatos brancos que pendiam da cadeira: os meus. Eu gostava de aspirar a fumaça dos seus cigarros. Ver os vendedores pedirem um café atrás do outro. Escutar suas mentiras, uma atrás da outra" (trecho do livro).

A cada vez que as mentiras eram contadas, mudavam os personagens, os cenários, os objetos, tonando as histórias novamente únicas. O universo politicamente incorreto dos caixeiros-viajantes é tão ingênuo que permite boas risadas durante a leitura. Para prestar contas às empresas, eles apanhavam pedágios que outros carros jogavam pela janela, faturavam dois almoços como se fosse um e compravam até roupas, utilizando notas como se fossem de alimentação.

"Não era um roubo, mas um minúsculo butim da luta que cada ser humano trava contra o sistema que o oprime", narra M.

A vida dos caixeiros-viajantes reflete o que aconteceu com os trabalhadores durante a ditadura do general Augusto Pinochet, entre 1973 e 1990. Mesmo quem não era revolucionário nem estava envolvido diretamente com o regime sofreu as consequências. A precariedade dos vendedores era também a precariedade da população. Ferrada usou o regime militar como exemplo para mostrar a fraqueza dos cidadãos, diante de das estruturas de poder. Se não fosse a ditadura poderia ter sido um governo negacionista e que distorce o sentido da democracia, como o do Brasil atual.

Na história, a mãe de M foi vítima de violência na ditadura e procura por um desaparecido político. Essa dor faz com que ela seja mais ausente e nem perceba que o pai deixava a menina faltar à escola para acompanhá-lo. A ruptura na narrativa acontece quando a mãe se dá conta que a menina vive uma educação paralela.

Diante de tantas questões, Kramp demonstra uma generosidade com o ser humano. Ferrada escreve essas memórias para dizer: - Olha, eu entendi que vocês erraram, mas não estou aqui para julgar. O ser humano é frágil e erra o tempo todo. Os pais tentam acertar, mas nem sempre conseguem. Vivi histórias incríveis com vocês, que contribuíram para formar quem eu sou. No final fica um sentimento nostálgico. Não é possível retornar a tempos e lugares que não existem mais. Só se for nas lembranças, como as que guardo do meu pai, pilotando o seu fusca bege.

SERVIÇO

Editora Moinhos

96 páginas 

R$ 45,00 (livro físico)

R$ 31,90 (e-book) 

www.editoramoinhos.com.br

Livro vencedor do Prêmio de Melhor Romance do Círculo de Críticos de Arte, do Prêmio de Melhores Obras do Ministério da Cultura (categoria romance) e do Prêmio Municipal de Literatura em Santiago.

 

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