Entrevista

"Mundo não é propício ao afeto", reflete María José Ferrada

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Adriana Guarda

Publicado em 13/05/2021 às 15:12 | Atualizado em 13/05/2021 às 15:22
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Confinada em um pequeno apartamento com seu marido, em Santiago, a escritora chilena María José Ferrada, 44 anos, conta que segue escrevendo e estudando para ‘sentir que o mundo está ativo’ diante da pandemia. Reconhecida como autora de livros infantis, ela decidiu lançar seu primeiro romance, Kramp, que chegou ao Brasil pela editora Moinhos. Com elementos autobiográficos, o livro traz a história do seu pai e outros caixeiros-viajantes, que viveram o ofício nas décadas de 1980 e 1990 no Chile. A precariedade da vida desses homens, a Ditadura Militar, o comportamento politicamente incorreto, a relação entre pais e filhos e as rupturas familiares estão presentes nesta curta narrativa de 96 páginas. Nesta conversa com o JC, que aconteceu pelo Zoom, em uma manhã do final de abril, Ferrada fala sobre o livro, sobre fragilidade humana, sobre o começo como escritora e sobre sua paixão pela literatura japonesa

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Jornal do Commercio - Você já é conhecida no mercado de livros infantis, por que decidiu apostar em um romance?
María José Ferrada – Eu tinha o desejo de escrever uma novela autobiográfica, porque meu pai era caixeiro-viajante. Ele é vivo, mas está aposentado. Eu queria contar a história dos caixeiros-viajantes, um ofício que foi desaparecendo a partir da instalação das multinacionais. Minha vontade era deixar um registro do que era essa forma de vida. A partir dessa primeira ideia começaram a aparecer outras coisas. Por exemplo, eu não tinha planejado trazer o tema da Ditadura, mas me dei conta que o regime tinha marcado muito aquele tempo. E também surgiu a questão dos afetos, mas a ideia principal eram os vendedores.

JC - Os caixeiros-viajantes tiveram contato com a obra? Como receberam o livro?
FERRADA – Sim!(com alegria). Eles leram, fizeram cópias e saíram presenteando muita gente. Estão felizes, sobretudo um personagem secundário com a letra S. Ele leu e disse que não sabia que eu gostava tanto dele, porque lhe dediquei muitas páginas.

JC - Os personagens de Kramp não têm nomes, apenas iniciais. Foi uma decisão de preservar as pessoas por ser um livro autobiográfico ou é uma tentativa de tornar ambíguo para dar o clima da Ditadura?
FERRADA – No começo foi porque todas as partes dos vendedores são muito reais. São pessoas reais. Eu queria fazer uma brincadeira com eles, esperando que se reconhecessem quando lessem: “olha, este sou eu!”. Mas depois, à medida em que escrevia me dei conta de que nominar alguém com uma letra é fazer desse alguém um anônimo. Uma pessoa que pode ser qualquer uma, no sentido de que para o sistema, as pessoas podem ser uma letra ou um número e são vítimas disso. Nós somos letras, números para as estruturas maiores.

JC - Os caixeiros-viajantes não são envolvidos diretamente com a Ditadura e até parecem alheios ao que se passa. De que maneira o regime influenciou a vida dessas pessoas que estavam à margem?
FERRADA – A novela tem essa intenção de mostrar como a Ditadura impactou a vida de pessoas que não estavam diretamente envolvidas em política, nem de um lado nem do outro. Os caixeiros-viajantes eram materialistas, queriam basicamente chegar ao final do mês, receber dinheiro e era isso o que importava. Não estavam envolvidos com política, mas a ditadura impactou a todas as pessoas. Foi como uma dor grande que se expandiu por um território. Então, independente que se pensasse que não estava envolvido, mas estava. Mesmo meus personagens não sendo valentes.

JC - Você comentou que a Ditadura não era o tema principal do livro, que teria entrado depois...
FERRADA – Sim. Uma coisa que me chamou atenção foi que os primeiros leitores da novela foram por esse tema da Ditadura. Eu pensei que a leitura seria pela relação do pai e da filha e como ela se quebra, como o afeto também desaparece. Esse era o tema da novela para mim. Como esse mundo vai contra ao afeto, como não é um mundo tão propício ao afeto. Mas o tema da ditadura envolveu tudo. Tudo bem. Talvez haja alguma coisa mais inconsciente, um sentimento muito forte do qual as pessoas não conseguem escapar. Não saberia explicar.

JC - A protagonista e narradora do livro, M, é uma criança de 7 anos. A experiência com a literatura infantil contribuiu para construir essa narrativa tão convincente?
FERRADA - Sim, com toda a certeza. Agora saiu minha segunda novela aqui no Chile (El hombre del cartel) e também é narrada por uma criança. Me interessa muito como pensam as crianças, aliás, como vêem o mundo. São muito mais diretas para olhar, não têm todo esse contexto que têm os adultos. As crianças são mais sinceras. Eu me relaciono muito com elas nas escolas e, se não gostam de um livro ou de um conto, eles te dizem.

JC - A capa de Kramp traz a foto de uma criança fumando. O livro sofreu críticas dos defensores do ‘politicamente correto’?
FERRADA – Sim! As pessoas reclamaram porque a criança fuma ou toma uísque, mas o que tentei fazer foi o retrato de uma época e naquela época o cigarro era muito presente. Mesmo que você não fumasse, sempre tinha um adulto ao lado fumando, fumando, fumando. Indiretamente as crianças estavam fumando, porque era uma época de muito cigarro.

JC - No romance, os caixeiros-viajantes têm muitas atitudes politicamente incorretas, que chegam a ser inocentes e engraçadas, dando um tom de humor ao livro.
FERRADA – Sim! Era como uma vida pícara e sempre terminávamos rindo. Não tinham dinheiro, deviam aos hotéis e pagavam depois. Também tinha quem fosse racista, xingando os donos de lojas chineses. Mas existia uma familiaridade entre o grupo, que era como uma família.

JC - O que você quis comunicar ao seu pai, aos caixeiros-viajantes e aos leitores em geral com Kramp?
FERRADA – Minha intenção com a novela também era mostrar que a criança tem uma compreensão dos adultos. Ela consegue ver que eles são frágeis e que cometem muitos erros, mas não há um rancor por isso. Queria dizer aos adultos e ao meu pai que está tudo bem entre nós. Que eu me dei conta de muita coisas, que talvez eles pensassem que não me dava conta, mas que eu estou em paz com tudo isso. Agora que eu também sou adulta compreendo que somos cheios de falhas, cheios de contradições. Eu havia notado essas contradições, mas não fiz juízo nem tenho rancor. Muito pelo contrário, tenho uma ternura por aqueles personagens, que foram pessoas carinhosas dentro de sua precariedade. Eu queria que aparecesse a fragilidade do ser humano diante das estruturas maiores, que pode ser a Ditadura, ou um sistema neoliberal que chega nos anos 90 e extermina com o pequeno comércio.

JC - Como você se descobriu escritora? Depois da experiência acompanhando seu pai como caixeiro poderia ter virado vendedora... (risos)
FERRADA – (Risos) Hoje eu também sou um pouco vendedora. Desde criança eu gostava de escrever e gostava muito das tarefas de espanhol e nada de matemática. E assim eu ia escrevendo até que nasceu meu único irmão, do segundo casamento da minha mãe. Nós tínhamos uma diferença de idade de 15 anos, então comecei a escrever livros para lhe presentear (o primeiro foi “Poemas de Leite com Mel”). Depois comecei a vender livros aos vizinhos. Então, quando criança, tive meu pequeno negócio de livros (risos). E também estudei jornalismo na universidade. Trabalhei um tempo em uma consultoria e em um banco, mas depois disso fui reduzindo a carga horária nesses lugares para escrever e, enfim, consegui me dedicar só aos livros, como hoje.

JC - Numa obra autobiográfica é preciso lidar com a reação das pessoas à leitura. Seus pais leram Kramp? O que acharam?
FERRADA – Meus pais leram sim, os dois, que são separados. Para os dois no começo não foi tão alegre. Meu pai ficou triste porque era o fim do seu ofício, algo como sua ruína. Mas depois ele gostou porque era personagem da novela e levou a todos os seus amigos e ficou orgulhoso. Para minha mãe foi mais difícil explicar que seu personagem foi mais ficcionado, porque ela não se via em uma mulher silenciosa e que, muito diferente do meu pai, foi muito presente para mim. Foi difícil explicar a ela que umas partes eram verdade e outras ficção, que não me sentia desprotegida por ela.

JC - E qual foi a recepção do livro aqui? Além do Chile e do Brasil, o romance já ganhou outros países?
FERRADA – Estou feliz porque tenho muitos leitores no Brasil. Eu pensava que era uma história muito local, muito chilena. Pensei que os leitores de fora poderiam não entender muitas coisas, mas entenderam. O livro também chegou na Itália e nos Estados Unidos e está saindo na Alemanha. Nunca pensei que poderia ser uma história mais universal. Além de lançar a segunda novela aqui no Chile também estou escrevendo uma espécie de Livro de Leituras de literatura japonesa. Durante a pandemia tive a chance de participar de um curso online com um professor de Barcelona e lemos um romance por semana. Gosto muito!

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