"E se Jesus nascesse no Recife? Nasceria numa cobertura, num palacete? Certamente nasceria num morro ou favela, e falaria a linguagem do povo. Estaria vestido como antes, com tecidos feitos em teares? Certamente vestiria uma calça jeans surrada, como todo pobre do Recife".
As reflexões são de Carlos Carvalho, diretor e roteirista da 'Paixão de Cristo do Recife: Jesus, a Luz do Mundo', ao justificar as mudanças que o espetáculo está trazendo neste ano.
Um Jesus negro, usando calça jeans e julgado por sacerdotes vestidos de paletó escuro marcam a encenação gratuita, que será realizada da sexta-feira (7) ao domingo (9) no Marco Zero. Duas mil cadeiras serão disponibilizadas na praça.
Outro elemento contemporâneo é a trilha sonora, com "Maria, Maria", de Milton Nascimento, e "Todos Estão Surdos" de Roberto Carlos e Erasmo Carlos na versão de Chico Science & Nação Zumbi. A divulgação dessas novidades provocou reação nas redes, com pessoas que apontam um afastamento das tradições.
"Sobre a música interpretada por Chico Science, não tem nada demais. A letra diz: 'Meu Amigo volte logo / Venha ensinar meu povo / O amor é importante / Vem dizer tudo de novo'. Mas eu entendo que, por se tratar de um tema religioso, algumas pessoas conservadores possam ser contra. É preciso lembrar que essa é uma ficção teatral. Muita gente segue o princípio do 'não vi, não vou ver e falo mal'. Peço que venham ver e ouvir a palavra de Jesus", continua Carvalho.
O diretor, que integra a Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe), explica que o espetáculo continua obedecendo aos ensinamentos de Jesus trazidos pelos apóstolos. A única diferença seria uma atualização nas falas. Por exemplo, além de falar "amai-vos uns aos outros, como eu vos amei na Bíblia", Cristo falaria "ame os seus amigos, ame a comunidade".
Essa "atualização", porém, vai além da aproximação com novas gerações. Em tempos de extremismos políticos e religiosos, a edição ganha contornos ainda mais urgentes. "Só em termos um Jesus negro, já estamos dizendo que queremos justiça racial e social. O espetáculo se posiciona. Contar a história de Jesus nestes nossos conturbados tempos é, antes de tudo, um ato político", continua.
"É importante trazer a palavra de Jesus para os dias de hoje, nesses tempos de racismo e intolerância. Jesus não era um cara racista. Quando ele dizia: amai uns aos outros, ele não está mencionando cor, sexualidade ou gênero. Ele está dizendo para amarmos uns aos outros. Essa é uma palavra de liberdade, de paz e respeito."
ELENCO
No papel de Jesus, o ator recifense Asaías Rodrigues (Zaza) será protagonista do espetáculo pelo segundo ano consecutivo, o primeiro no Marco Zero - em 2022, ele se apresentou em edição realizada no Teatro Luiz Mendonça.
"Minha emoção, ao fazer Jesus na Paixão de Cristo do Recife, com sua valentia, rebeldia, seu sentimento indiscutivelmente humanitário, coletivo e cirurgicamente político, é de muita responsabilidade. Trata-se de uma grande missão. O público não vai ao Marco Zero para se entreter, vai para rezar junto, num acontecimento teatral que está no coração de uma cidade inteira, de um estado e de um país", diz.
"Esse espetáculo é arte, mas é, sobretudo, uma grande oração”, aponta o ator, que já morou e atuou na Itália e Portugal, diante da oportunidade de encenar um personagem tão universal. O teatro fala do seu tempo, para seu tempo e dele em diante. Eu torço para que, daqui para frente, Jesus também possa ser feito por um japonês, um indiano e sobretudo um indígena."
Maria será encenada pela premiada atriz, apresentadora e diretora Brenda Lígia, que já atuou em séries de TV como Assédio e Sob Pressão, soma muitos espetáculos teatrais no currículo, além de ter estrelado filmes, entre curtas e longas.
"Um orgulho enorme fazer parte desse espetáculo lindo e revolucionário, que trata de uma história contada há muito tempo e muito reverenciada pelos que têm fé. E aqui acho importante falarmos de todas as fés. Mesmo assim, essa Paixão consegue ser contemporânea, tanto na linguagem, quanto na atuação, nos cenários. Além disso é grátis, para o povo. Como Jesus gostaria! E ainda encenada no coração do Recife, numa paisagem linda e histórica", celebra a atriz.
O elenco ainda conta com Angélica Zenith (Maria Madalena), Albemar Araújo (Herodes), Júnior Aguiar (Judas), Normando Roberto (Anás), Carlos Lira (Pôncio Pilatos), Ana Cláudia Wanguestel e Fábio Calamy (demônio). Também subirão ao palco da Paixão recifense alunos de cursos de teatro da cidade e 12 bailarinos do grupo Bacnaré.
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