'Vale a pena continuar lutando', diz Leci Brandão sobre mulher negra no STF. Confira a entrevista
'Temos condições, inteligência, qualidade e a nossa liberdade', diz sambista, que cumpriu temporada de quatro shows no Recife
Uma das principais sambistas do Brasil, Leci Brandão está no Recife para uma temporada de quatro shows na Caixa Cultural Recife, na Praça do Marco Zero, com o show "Eu Sou o Samba" - a última apresentação ocorre neste sábado (16), com ingressos esgotados.
Aproveitando a passagem pelo Nordeste, Leci incluiu no repertório compositores como Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Fagner, Jackson do Pandeiro e Djavan. Ela ainda canta composições de sua autoria e de grandes mestres e parceiros, como Arlindo Cruz, Xande de Pilares, Paula Lima, Leandro Lehart e Martinho da Vila.
"As pessoas choram, tem gente que conta história de que me ouve desde pequeno, porque os avós tinham LPs. Acredito nessas histórias", diz Brandão, em visita ao Sistema Jornal do Commércio de Comunicação nesta sexta-feira (15).
Temáticas atuais
Prestes a completar 80 anos, tendo ainda quase 50 anos de carreira, Leci Brandão cantou sobre muitos temas, alguns deles pertinentemente atuais. "Algumas músicas foram preteridas, censuradas", relembra. "Sempre procurei defender as pessoas, sempre toquei em pautas difíceis."
"Certa vez, eu estava assistindo o noticiário e apareceu uma matéria sobre passeata de professores fazendo reivindicação por salário. A imagem que ficou para mim foi uma bota preta dando um chute em um professor, perto do rosto. Naquela hora, Deus mandou a letra para mim", disse, explicando o surgimento da faixa "Anjo da Guarda" (1995).
Sobre a questão LGBT, Leci cita "As Pessoas e Eles", de 1976, que mostra como a população tratava as pessoas LGBTs, e "Ombro Amigo", de 1977. "Essa fala sobre amor, sobre as pessoas terem de ir para a boate para amar e falar de amor. Ela tocava muito, tocava no Brasil inteiro. Ainda teve 'Assumindo', de 1985, que tenho a ideia de regravar porque esse é um tema muito atual. O público LGBT está tendo uma adesão muito grande, pois as pessoas entenderam que cada um tem que ser o Deus quer que seja", diz.
"Tem político que nunca ouviu falar, nunca quis saber, e hoje está todo mundo a favor dessa situação. Inclusive, com discussões aqui em Pernambuco. Vi o caso da moça que iria receber um título na Câmara do Recife, mas que teve uma vereadora que tentou impedir por ser uma mulher trans. Cidadã é cidadã, tem que ser mulher", dispara, sobre o recente caso de rejeição de título de cidadã recifense para uma professora trans.
Episódio de racismo
Dentro da temática do respeito às minorias, Leci relembrou de um episódio de racismo que repercutiu bastante. "Fui matéria em 1980, no Rio de Janeiro, porque um porteiro pediu para que eu e minha mãe usássemos a entrada de serviço. Era a final do festival MPB 80 e eu estava indo para as pautas dos jornais por outro tema."
"Eu acho que muita gente fala sobre esse tema hoje, mas não assume que é racista. Ninguém assume, mas as pessoas são nas atitudes. Muitas vezes, na forma de piada, de comportamentos e tal. O racismo institucional é pior, mas a gente tem que enxergar que hoje, no poder legislativo, existem mulheres e homens negros fazendo a diferença."
Ainda sobre o tema, Brandão lamentou a falta de representatividade no Poder Judiciário - recentemente, uma campanha foi feita para que o presidente Lula indicasse a mulher negra ao Supremo Tribunal Federal. "Não conseguimos isso ainda. Nós temos que entender que vale a pena continuar lutando. Temos condições, temos inteligência, temos qualidade e temos a nossa liberdade. Somos filhos de Deus, somos seres humanos".
Política
Em 2010, Leci Brandão filiou-se ao PCdoB e candidatou-se ao cargo de deputada estadual pelo estado de São Paulo, tornando-se a única mulher negra a cumprir quatro mandatos consecutivos na história da ALESP.
"São coisas que Deus me deu. Eu não fui procurar a política. Foi um convite que recebi, em 2009. De imediato, não aceitei. Eu sou ligada à religião de matriz africana e procurei a minha casa espiritual para entender porque estavam me procurando para ser candidata", disse, sobre a entrada no legislativo.
"A resposta que veio para mim é que o meu orixá, que é Ogum, sugeriu que eu deveria aceitar o desafio porque musicalmente eu sempre procurei defender as pessoas, sempre toquei em pautas difíceis, sempre fui a favor daquilo o que eu acho que vale a pena. Eu tinha uma coisa a cumprir em outro espaço", conta.
"Então, aceitei e fui eleita em 2010, trazendo de volta para a Assembleia um partido que estava há oito anos. Consegui uma votação muito boa. E tem um fato importantíssimo: fui a segunda mulher negra a entrar na ALESP. A primeira foi a Dra. Rosa Ribeiro e eu chego 40 anos depois."
Compositoras pioneiras
Neste sábado (16), a partir das 15h, o público poderá conferir na Caixa Cultural Recife a palestra “As pioneiras compositoras e o legado de Leci Brandão”, ministrada pelo jornalista, produtor e crítico musical Rodrigo Faour, que também é historiador da música popular brasileira. O acesso é gratuito, com distribuição de ingressos uma hora antes.