MÚSICA

"Eu fico com fama de chato, implicante, mas se as pessoas soubessem...", diz Johnny Hooker, que lança seu terceiro álbum, "Orgia"

Disco é inspirado no livro "Orgia - Os Diários de Tulio Carella, Recife 1960" e chega num momento em que a indústria da música promove artistas só por dinheiro ou "milagre"

Romero Rafael
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Romero Rafael
Publicado em 09/06/2022 às 18:55 | Atualizado em 09/06/2022 às 18:57
CARLOS SALLES/DIVULGAÇÃO
Johnny Hooker - FOTO: CARLOS SALLES/DIVULGAÇÃO

Johnny Hooker fez um desabafo, dia 21 de maio, num timing mais-que-perfeito. Diante do baixo número de streams do seu single Cuba, o cantor e compositor recifense expôs sua frustração e, ao mesmo tempo, como opera a indústria da música hoje — à base de muito dinheiro (e aqui está a relação entre o agronegócio e o sertanejo dominante) ou de virais no TikTok, algo possível só com sorte ou por milagre.

Nos dias seguintes, desabafaram a norte-americana Halsey — impedida por sua gravadora de lançar música até que viralize algo no TikTok — e Anitta — revelando ter de conseguir, ela mesma, investimento para seus lançamentos, uma vez que a gravadora só banca virais. Quando parecia suficiente, veio a 'CPI do Sertanejo', expondo a falta de pudor de Gusttavo Lima e prefeituras em receber e pagar cachês milionários com verbas de cidades desassistidas até em saúde e educação.

No sentido oposto da correnteza do dinheiro e à espera de um milagre, Johnny Hooker lança nesta quinta-feira (9), seu terceiro álbum, Orgia. O disco sai "na unha", expressão que ele usa para deixar claro que tudo o que faz e já conseguiu é e foi com bastante trabalho. Pode ser seu último — algo que ele cogitou nos tuítes de maio e que também consta no material de divulgação.

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LANÇAMENTO Johnny Hooker apresenta 13 faixas em seu terceiro disco - CARLOS SALLES/DIVULGAÇÃO

"A sensação do retorno é de portas fechadas"

"É um momento de desesperança. A gente vê uma indústria musical engolida pelo agronegócio. O dinheiro engoliu tudo", disse Johnny Hooker em entrevista pelo Zoom. "A sensação do retorno [da pandemia] é de portas fechadas. As redes sociais não entregam mais o conteúdo como antes", continuou.

"Mas o mais importante é o agronegócio, que, realmente, dita como as coisas se encaminham. É uma estrutura muito bem consolidada. Lulu já falou isso nos anos 90", completou, referindo-se a uma fala de Lulu Santos num "Domingão do Faustão" em 1992, em que critica artistas do sertanejo pelo monopólio da música no rádio e na TV e pela eleição de Collor. (Collor que, aliás, avalia ser candidato ao governo de Alagoas e ter Bolsonaro em seu palanque, o que ressalta a coerência da análise de Johnny Hooker, num corte de tempo de 30 anos.)

"Eu nunca tive um viral, os milagres foram na unha, com sangue, suor e lágrimas, reinvestindo o pouquinho que eu conseguia para expandir o meu trabalho", ressaltou na entrevista em vídeo. "A gente não tem dinheiro pra investir, mas fica sujeito às mesmas pressões do mercado [em relação a quem tem, caso queira ser ouvido]."

Sem dinheiro nem polêmica, não aparece

Depois do desabafo lá de maio, Cuba cresceu em audições, e Johnny Hooker recebeu comentários de gente relatando que não sabia do lançamento porque não foi notificada. Ou seja, se não pagar, não aparece.

"As redes só viralizam o que é polêmico. Foi assim que Bolsonaro foi eleito: o algoritmo espalha coisas polêmicas." Mas nem sempre foi assim — quando ele compartilhou o clipe de Amor Marginal em sua página no Facebook, em 2015, com menos seguidores do que tem hoje, alcançou 1 milhão de pessoas; já seu último chegou a apenas 36 mil. Ou seja, se não pagar nem criar polêmica, não aparece.

Sem milhões nem 'publi'

Mas Johnny Hooker, que não é do sertanejo nem é rico, tem um propósito e uma inquietude artística. Lança clipes "na raça". O de Cuba, lançado em maio, foi realizado com um orçamento, segundo ele, tão baixo quanto 2,50. Trabalhou nele uma equipe de somente cinco pessoas, em Itamaracá, aproveitando sua passagem pelo Recife.

O penúltimo clipe, Amante de Aluguel, do fim de 2021, foi gravado em apenas uma diária, uma cena após outra, sem camarim. "É um dos meus preferidos, porque é cinema, é Madonna, é Almodóvar, com coreografia no meio da rua. Isso tudo com 2,50. Minha produtora diz que trabalha com mágica", brinca.

"Eu fico com a fama de chato, implicante, mas se as pessoas soubessem o terror que é levantar uma carreira na unha... A gente tem que lutar pra fazer as coisas mudarem pra melhor. E pra conseguir isso tem de ser incisivo, falar sério, como adultos. Não é como se eu fosse uma cantora milionária que mora numa mansão e acorda fazendo 'publi' e tem uma vida superconfortável. A minha vida é ralação pura."

Orgia

Apesar de tudo, Johnny Hooker mantém a chama acesa — "Enquanto o apocalipse está acontecendo, a gente pode encontrar outros caminhos". O novo álbum, Orgia, o terceiro da carreira, é tanto para sobreviver a esse apocalipse (na música e no País) quanto para, se for o caso, 'fazer a fênix'.

O título é emprestado do livro Orgia — Os Diários de Tulio Carella, Recife 1960 (editora Opera Prime), publicação esgotada há anos em que o dramaturgo argentino relata experiências homossexuais no Centro do Recife, para onde ele veio, como docente do curso de teatro da UFPE.

Johnny Hooker amalgamou as suas histórias — como recifense há pouco tempo estabelecido em São Paulo, "embasbacado com as possibilidades de desejo numa cidade que é uma loucura", num momento de tensão política — às de Tulio Carella — um estrangeiro que descobriu prazeres no Recife, no contexto da ditadura militar.

O desejo — não exatamente, ou não somente, o sexo — é o condutor do trabalho, como fogo da vida.

"Esse disco é sobre resgatar a vontade de viver", disse ele, que citou a manifestação do desejo no sexo e também a arte e o deboche como "coisas em que a gente pode se agarrar para imaginar mundos melhores". Em Maré - sétima faixa do álbum, composição do recifense Juliano Holanda que ele canta num (ótimo) dueto com Silva -, o desejo é uma redoma: "Enquanto o mundo explode lá fora/ aqui nesse quarto minguante a gente/ se beija e se fode, se ama e se come/ mastiga e se engole/ com tanta fome até se desmanchar".

Orgia, para Johnny Hooker, fecha uma trilogia. Comentou que seu primeiro álbum, Eu Vou Fazer uma Macumba pra te Amarrar, Maldito (2015) evoca o Recife e o amor romântico, enquanto o segundo, Coração (2017), toca na política, e o de agora, no desejo. "Formam um tripé que é o universo inteiro das nossas vidas."

Orgia abre com ele recitando Cap 1 A Cidade do Desejo, um texto-colagem de frases escritas por Tulio Carella com outras dele próprio. O fim da faixa inicial abre para o disco assim: "Corto uma mecha dos pelos de cada amante e guardo como um suvenir que me lembre que ainda estou aqui vivo, na cidade do desejo. E, pela primeira vez na minha vida, a vontade de ser me abandona, e sou possuído pela vontade de viver."

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