Há um longo caminho ainda a se percorrer em toda a América Latina e especificamente no Brasil em se tratando da universalização de novas tecnologias em uso para pagamentos. A questão não é nem o fato do País estar de alguma maneira defasado em relação ao lançamento de novas soluções. Fintechs, bancos, credenciadoras e demais atores que atuam no mercado de finanças seguem a par das tendências que se desenrolam em todo o mundo e continuam investindo nesse sentido. Mas num País continental e desigual, as necessidades quanto aos meios para acesso e uso do dinheiro são distintas entre a população. Evoluir em pagamentos digitais sem deixar de lado a relevância do dinheiro em espécie é um desafio imposto ao próprio Banco Central (BC).
À medida que o BC avança quanto ao seu sistema de pagamentos instantâneos PIX e empresas como a Visa e o Facebook preparam para o País pagamentos via WhatsApp, o Brasil ganhará até o fim do mês uma nova cédula de R$ 200. A pandemia acentuou o que já se sabia sobre muita gente ainda depender quase que exclusivamente do dinheiro em espécie, mas é também o novo cenário de convivência imposto pelo avanço da covid-19 que deverá ditar um ritmo mais acelerado de evolução.
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Aos 80 anos, Manoel dos Santos, precisou ir a um caixa eletrônico perto de casa todo fim do mês mesmo em plena pandemia. “Tenho que ir tirar o dinheiro da aposentadoria. Nunca deixei no banco. Quando chega o dia, vou e saco. Guardo em casa”, afirma. Ter o dinheiro sob a vista, para ele, é uma segurança. “Na pandemia é que a gente precisa guardar mesmo. Sei lá o que pode acontecer ou fazerem com o dinheiro”, desconfia.
Para quem tem mais idade, confirmar um pagamento sem ver ou tocar as cédulas pode ser um pouco mais desafiador. Porém em todo o Brasil, independentemente da idade, ter dinheiro em mãos passa a ser uma necessidade. Segundo dados do Instituto Locomotiva, cerca de 45 milhões de brasileiros ainda são desbancarizados. Para abertura de contas, facilita o comprovante de rendimentos, mas pelo menos 36% da população ocupada, ou seja, 30,8 milhões de trabalhadores atualmente estão no mercado informal. Mesmo quem consegue ter conta em banco, ainda demanda muito o uso do dinheiro físico.
“O dinheiro físico continua muito relevante no Brasil. Do ponto de vista geral (mesmo sem pandemia), as transações realizadas nos caixas do Banco24Horas crescem dois dígitos todos os anos, superando o total de 2,1 bilhões. É importante destacar a importância do dinheiro físico para acesso às pessoas com restrições de infraestrutura e classes sociais mais baixas. Nos terminais do Banco24Horas, três a cada cinco saques são realizados por pessoas das classes C, D e E. A média de transações é 20% maior nos equipamentos disponíveis nas regiões com esse perfil populacional”, explica o diretor de autoatendimento da TecBan, Luiz Stefani.
Influenciado pela pandemia, o volume sacado neste mês de julho nos mais de 23 mil caixas eletrônicos do Banco 24h foi 25% maior do registrado no mês de abril. Dentre as 180 milhões de transações ao mês realizadas nos caixas, 100 milhões correspondem a saques. “Em nossa visão, não se trata de ‘dinheiro físico ou digital’, mas sim de convergência. É a união do dinheiro físico, que como os números mostram é essencial para todas as camadas sociais, com a complementaridade dos benefícios das inovações tecnológicas como Open Banking, Blockchain, Saque Digital com Código QR, a própria Solução Móvel do Banco24Horas, +Varejo e o Mídia Banco24Horas que já dispomos”, resume Stefani.
Em 2018, o último levantamento feito pelo Banco Central sobre a relação do brasileiro com o dinheiro mostrou que 52% das compras em lojas físicas são pagas em espécie. Em 2013, era a forma de pagamento utilizada em 57% das compras.Em relação ao faturamento, o dinheiro também é responsável por 50% do volume. Nos últimos 12 meses, o Brasil teve uma alta de 35% do volume de papel-moeda em poder do público. O volume aumentou mais de R$ 55 bilhões desde o início da pandemia, passando de R$ 215 bilhões no fim de fevereiro para R$ 277 bilhões no fim de julho A expectativa que era de R$ 301 bilhões em circulação este ano saltou para R$ 342 bilhões, e foi um dos fatores, segundo o BC, para a criação da nota de R$ 200.
Transição digital
Para a World Pay, o dinheiro continua a dominar o ponto de venda na América Latina, mais do que em qualquer lugar do mundo. “O dinheiro é responsável por 58% dos gastos no ponto de venda, em comparação com 15% na América do Norte e 30% globalmente. A persistência do dinheiro reflete uma grande população sem acesso ou com acesso reduzido a serviços bancários, a penetração limitada da aceitação de pagamentos eletrônicos, altas taxas bancárias para os consumidores e preocupações contínuas com fraude”, aponta no seu relatório global de pagamentos.
Em todo o mundo, a expectativa é de que a carteira digital/móvel deixe de representar 41,8% dos métodos de pagamento para compras online e chegue a 52,2% em 2023. Nos pontos de venda esse crescimento eleva o percentual de 21,5% para 29,6% no mesmo período. O dinheiro deve cair de 30,2% para 18,7%. Na América Latina, a previsão é de que o dinheiro deixe de ser 58,2% da forma de pagamento nos pontos de venda, mas se mantenha em 43,2% daqui a três anos.
“As discussões atuais sobre a regulamentação do open banking criarão oportunidades para transações de pessoa para pessoa em 2020, e, até 2023, os dispositivos móveis serão responsáveis por quase metade (48,5%) das vendas on-line de varejo do País”, avalia a World Pay.
O crescimento para pagamento digital, com demanda de novos mercados, é no que aposta a Visa. “O mercado brasileiro ainda tem uma penetração bastante modéstia, perto do que poderia ser 40% do consumo pessoa física é em meios eletrônicos de pagamento. Existe ainda uma grande oportunidade de ‘eletronificar’ os pagamentos aqui no Brasil e é isso que todos nós estamos buscando. Em outros mercados esse indicador passa a 60% a 90%”, conta o VP de Inovação e Soluções da Visa, Percival Jatobá.
Segundo ele, a Visa tem avançado na atuação por segmentos. “Esta semana começamos a trabalhar com uma das nossas fintechs aceleradas para poder entrar mais no segmento de saúde, que ainda aceita pouco pagamento eletrônico. Outro segmento é o transporte público, que só conseguimos avançar porque aderimos à tecnologia por aproximação, o contactless. Já temos atuação em metrôs, ônibus e agora nas barcas do Rio de Janeiro. Estamos alargando o tamanho da porta, abordando outros segmentos. Isso acontece no mundo todo. Aqui no Brasil vamos crescer e estamos crescendo num ritmo aceitável”, complementa.
Outro foco da Visa no Brasil, atualmente em fase de testes, é o pagamento instantâneo via WhatsApp, que usa tecnologias como o Visa Direct (pagamentos em tempo real) e o novo recurso de segurança Visa Cloud Token, tecnologia lançada mundialmente no Brasil para a parceria com o Facebook. A Visa ainda aguarda liberação do Banco Central para lançamento da funcionalidade de pagamento no WhatsApp.
Esse caminho bifurcado de evolução de novos meios de pagamento e de uso do dinheiro é o que precisa ser priorizado, na visão do coordenador do curso de economia da FGV EESP, Joelson Sampaio. “Acho que a ideia é essa tentar equilibrar esse dois ambientes bem diferentes. Caminhamos sim para ter cada vez menos o dinheiro em espécie e fazer uso de aplicativos e novas tecnologias. Mas para alguns haverá sempre essa sensação de segurança e necessidade de se ter o dinheiro vivo”.
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