Estados Unidos

Eleição americana na terça coloca futuro da democracia na balança

Além de definir quem vai comandar a maior economia do mundo, o resultado terá repercussão nos rumos da democracia mundial. Os prognósticos, no entanto, são pouco animadores

Leonardo Spinelli
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Leonardo Spinelli
Publicado em 01/11/2020 às 7:00
OCTAVIO JONES/AFP
POPULISMO Grande Recessão abriu brecha para o discurso de Donald Trump - FOTO: OCTAVIO JONES/AFP

Resumo da matéria

  • Grande Recessão de 2008 abriu caminho para discursos populistas como o de Donald Trum
  • Joe Biden aparece como favorito nas mesas  de apostas
  • Preocupação ronda mercados preocupados com possível contestação do resultado
  • Debate sobre vaga na Suprema Corte coloca novas ameaças no quadro institucional

Após 46 dias de votação, as eleições dos Estados Unidos chegam ao seu ápice nesta terça-feira (3), último dia do calendário oficial. Além de definir quem vai comandar a maior economia do mundo, o resultado terá repercussão nos rumos da democracia mundial. Os prognósticos, no entanto, são pouco animadores.

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A Grande Recessão do final da década passada aumentou a insatisfação popular e abriu questionamentos em relação ao movimento de globalização, que não trouxe respostas satisfatórias para problemas sociais e políticos. Foi a brecha perfeita para discursos populistas como o do republicano Donald Trump, candidato à reeleição, que estimulam a polarização na sociedade e bradam o nacionalismo como freio à marcha globalizante que roubaria empregos.

"A derrota de Trump seria uma perda gigantesca do populismo que surgiu como uma resposta bastante caótica à insatisfação dos cidadãos à situação econômica após a Grande Recessão. Eu acho que surge uma nova chance da democracia de oferecer caminhos possíveis e negociados dentro das estruturas democráticas, e isso é o mais importante (dessa eleição)", avalia Pedro Paulo Silveira, economista-chefe da Nova Futura Investimentos.

Uma eventual vitória de Trump poderá acirrar ainda mais a briga contra o multilateralismo de mercado, que ainda peca por não trazer respostas satisfatória os problemas econômicos, políticos e sociais. “Os Estados Unidos exercem uma influência política em outros países, e na Europa em particular. Então, eu acho que a eleição americana tem uma importância geopolítica muito grande”, diz Ivo Chermont, sócio e economista-chefe da Quantitas Asset Management.

APOSTAS

No mercado de apostas, o adversário democrata Joe Biden aparece como favorito, apesar de a diferença para Trump ter diminuído nos últimos dias. Na sexta, a média de apostas compiladas pelo site Real Clear Politics apontava 64,2% dos palpites (e dinheiro) para uma vitória de Biden, contra 34,8% para Trump (atualizar os números). O resultado registra os lances em bolsas de apostas de vários países. No Brasil, arriscar dinheiro em resultados políticos é proibido.

 

DREW ANGERER/AFP
BIDEN Mesmo de centro, riscos à democracia não desapareceriam com sua vitória - DREW ANGERER/AFP

Os cálculos nas mesas de jogos refletem as pesquisas. Na média nacional, o democrata estaria com 7,2 pontos de vantagem sobre o republicano, também de acordo com a compilação do Real Clear Politics.

Os riscos à democracia, no entanto, não acabariam com uma vitória de Joe Biden. Já faz um tempo que Trump vem batendo na tecla de que existiria um risco de fraude eleitoral por causa dos votos pelo correio, apesar de não haver evidências claras de que isso seja verdade. É bom lembrar que a votação nos EUA começa 46 dias antes do dia oficial da eleição e as pessoas podem enviar seus votos pelos correios. Este ano, por causa da pandemia, mais gente passou a votar de casa por medo da doença.

"O que a gente já viu nos últimos meses é que muitos votos acabam sendo desconsiderados ou eliminados por erro, mais provável de acontecer nas votações por correio", afirma a analista de Política Internacional da XP Investimentos, Sol Azcune. Ela lembra que, em casa, sozinho e sem ajuda, o eleitor tem uma maior probabilidade de fazer confusão na hora de registrar o voto.

Sol lembra que nas eleições primárias deste ano mais de 500 mil votos foram eliminados por erros. "Pode parecer um número não muito significativo, mas quando a gente olha para os estados individualmente, o impacto pode ser bem relevante", diz. Ela cita o exemplo de Wisconsin, um chamado estado "pêndulo", ou seja, que não tem preferência clara por eleger democratas ou republicanos. "Nas primárias deste ano, 23 mil votos foram desconsiderados. Em 2016, Trump venceu neste estado por cerca de 2.700 votos. Ou seja, é uma variável que pode acabar tendo um impacto super relevante em quem vence", compara.

O sistema americano funciona por meio de colégio eleitoral, em vez de voto popular de proporção populacional. Em outras palavras, a vitória no colégio eleitoral de um estado pode acabar resolvendo uma eleição. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 2000, quando o voto eleitoral foi contestado, depois de George W. Bush e Al Gore estarem praticamente empatados na Flórida, último estado a definir a eleição naquele ano. "O país inteiro acabou aguardando por mais um mês o resultado da eleição", relembra.

Para o mercado, a contestação do resultado eleitoral de novembro é o cenário que traria maiores incertezas, pois tem o potencial de ameaçar as instituições americanas, especialmente diante da postura de Trump e seu vice Mike Pence de não confirmar se vão aceitar um resultado desfavorável.

Sol Azcune salienta que as instituições americanas são sólidas e, portanto, mesmo que demore um pouco mais para sair o resultado oficial, a tendência é que o embate seja resolvido dentro de um prazo razoável, com pouco riscos de escalar para um crise constitucional "como poderia acontecer em outros países".

ESTADOS

Nos EUA, os estados são responsáveis pela votação em seus territórios e a contestação deverá ocorrer em estados onde o resultado for mais apertado. "Trump não vai contestar todos os estados, ele vai escolher aqueles onde voto for mais acirrado e geralmente isso tende a acontecer nos famosos swing states (estados pêndulos), como Pensilvânia, Wisconsin, Michigan, Flórida e outros", diz Sol.

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FLANCO Trump vem batendo na tecla de que existiria um risco de fraude eleitoral nos votos pelo correio - GEORGE FREY / AFP

Mesmo com essa perspectiva negativa do pós-eleição, os analistas da XP Investimentos trabalham com a hipótese de que o presidente eleito tomará posse no dia marcado, 20 de janeiro. O calendário das eleições americanas têm algumas datas em que o Congresso e o Judiciário têm que respeitar. A primeira data limite é 23 de dezembro. Até esse dia todos os estados deverão já ter entregue o resultado de suas urnas para que o Congresso confirme o vencedor. No dia 6 de janeiro, os membros do colégio eleitoral registram seus votos e duas semanas depois o eleito toma posse.

Há outras datas protocolares, como o dia 8 de dezembro, data em que os Estados deverão já ter resolvido suas disputas internas e 14 de dezembro, considerada primeira data limite para que os entes federados registrem os seus resultados no Congresso. "Mas são datas protocolares, não são constitucionais", diz Sol.

Diante de todo esse processo, a avaliação é que não haja um risco institucional de Trump, por exemplo, se recusar a deixar a cadeira da presidência. "A gente não acredita que isso seja um risco significativo porque as instituições nos Estados Unidos são muito sólidas, mas o fato de estarmos discutindo essa possibilidade já não é algo que não é positivo porque significa que existe um maior risco", analisa.

Para o cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria Integrada, essa a agenda de contestação jurídica do processo eleitoral também de que as regras do jogo estariam sendo violadas "são manifestações práticas de percepção de crise de legitimidade, que certamente deixará marcas negativas para o sistema político americano".

SUPREMA CORTE

Cortez avalia que o problema continuará, mesmo com a confirmação de uma eventual vitória de Biden, já que já começa a surgir pressão para aumentar o número de juízes da Suprema Corte no caso da vitória democrata. "Há uma leitura entre os democratas de que os republicanos não jogaram com as regras."

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CONSERVADORA Trump nomeou a juíza Amy Coney para Suprema Corte e abriu crise - ALEX WONG/AFP

O debate ressurgiu com a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, indicada por Bill Clinton e uma das principais vozes progressistas do tribunal. Donald Trump nomeou imediatamente a juíza Amy Coney Barrett, descumprindo uma tradição criada por eles mesmos, também às vésperas da eleição de 2016, quando o juiz conservador Antonin Scalia morreu. O partido de Trump na ocasião se recusou a considerar o nome indicado pelos democratas alegando que a decisão deveria ser tomada após a decisão das urnas. Com essa decisão de agora, a Suprema Corte, que já tinha o maior número de juízes conservadores, aumentou ainda mais. Agora são seis contra três liberais.

Todo esse cenário, aponta Cortez, demonstra um esgarçamento institucional, "construído ao longo do tempo, num processo de rupturas e desgaste". Para os observadores e o mercado de uma forma geral, tudo isso é percebido como razão de risco institucional que se não forem resolvidos poderão trazer mais e mais episódios.

"Do ponto de vista político, o cenário traz a ideia que a democracia se rompe mesmo em países avançados, com PIB elevado e estrutura sócio- econômica relativamente positiva", compara Cortez. "Os EUA ainda são um caso de sucesso, apesar das desigualdades. É a ideia das democracias em risco".

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BIDEN Mesmo de centro, riscos à democracia não desapareceriam com sua vitória - FOTO:DREW ANGERER/AFP
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CONSERVADORA Trump nomeou a juíza Amy Coney para Suprema Corte e abriu crise - FOTO:ALEX WONG/AFP
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A missão indicou que é "crítico" que "os candidatos ajam com responsabilidade, apresentando e defendendo demandas legítimas nos tribunais e não especulações infundadas na mídia". - FOTO:GEORGE FREY / AFP

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