O Senado da Argentina aprovou nesta quarta-feira a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação, uma decisão histórica que transforma o país em um dos pioneiros das conquistas sociais na América Latina.
A legalização do aborto, um projeto do presidente de centro-esquerda Alberto Fernández, já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados em 11 de dezembro e nesta quarta-feira recebeu os votos favoráveis de 38 senadores, 29 votos contrários e uma abstenção, um resultado mais folgado que o previsto.
Fernández celebrou o resultado no Twitter. "O aborto seguro, legal e gratuito é lei. Hoje somos uma sociedade melhor que amplia direitos às mulheres e garante a saúde pública", escreveu o chefe de Estado.
El aborto seguro, legal y gratuito es ley.
— Alberto Fernández (@alferdez) December 30, 2020
A ello me comprometí que fuera en los días de campaña electoral.
Hoy somos una sociedad mejor que amplía derechos a las mujeres y garantiza la salud pública.
Recuperar el valor de la palabra empeñada. Compromiso de la política. pic.twitter.com/cZRy179Zrj
A votação durante a madrugada foi acompanhada por milhares de militantes feministas, que celebraram e choraram de emoção com o resultado, após mais de 12 horas de espera nas proximidades do Congresso. Além das mulheres que estavam na praça diante do Parlamento, muitas saíram às janelas e varandas para comemorar a notícia.
"Depois de tantas tentativas e anos de luta que nos custaram sangue e vidas, hoje finalmente fizemos história. Hoje deixamos um lugar melhor para nossos filhos e nossas filhas", disse à AFP Sandra Luján, uma psicóloga de 41 anos que participou na vigília ao lado de milhares de jovens com lenços verdes, o símbolo da campanha a favor da legalização do aborto.
Um projeto para legalizar o aborto havia sido aprovado em 2018 pela Câmara dos Deputados, mas foi rejeitado pelo Senado. A mudança foi possível graças à campanha protagonizada por milhares de jovens e grupos de mulheres, a chamada 'maré verde'.
Com a aprovação desta quarta-feira, a Argentina, país natal do papa Francisco, se torna a maior nação da América Latina a legalizar a interrupção da gravidez, o que também está permitido no Uruguai, Cuba e Guiana. No México está permitido no estado de Oaxaca e na Cidade do México.
Em sua última audiência antes do fim do ano, o pontífice afirmou nesta quarta-feira, em uma referência explícita a Argentina: "Os cristãos, como todos os crentes, bendizem a Deus pelo dom da vida. Viver é antes de tudo ter recebido a vida. Todos nascemos porque alguém desejou para nós a vida. E esta é apenas a primeira de uma longa série de dívidas que contraímos vivendo", disse.
Até agora, o aborto era permitido na Argentina apenas em caso de estupro ou de risco de vida para a mulher, legislação em vigor desde 1921. A legalização, que contempla a objeção de consciência (os objetores terão a obrigação de enviar a paciente para outro centro médico), não seguiu linhas partidárias. Embora a governante Frente de Todos apoiasse o projeto, nem todos os congressistas do grupo aprovaram a medida.
E alguns parlamentares votaram a favor da legalização, apesar de sua fé religiosa. "Por quê queremos impor por lei o que não podemos impedir com nossa religião?", questionou a senadora Gladys González, do grupo opositor Juntos Pela Mudança e católica praticante, ao anunciar apoio ao projeto.
O presidente Fernández, próximo ao papa Francisco, havia declarado há alguns dias: "Sou um católico que pensa que o aborto não é um pecado".
O governo calcula que sejam realizados entre 370.000 e 520.000 abortos clandestinos por ano no país, de 45 milhões de habitantes. Desde a restauração da democracia, em 1983, mais de 3 mil mulheres morreram devido a abortos feitos sem segurança.
De modo paralelo, o Congresso também aprovou a 'Lei dos 1.000 dias', para dar apoio material e de saúde às mulheres de setores vulneráveis que desejam levar adiante a gravidez, de modo que as dificuldades econômicas não representem um motivo para abortar.
A aprovação da lei "serve como inspiração para que outros países da região e do mundo avancem no reconhecimento do acesso ao aborto legal e seguro", afirmou a Anistia Internacional.
Oposição
A oposição à interrupção voluntária da gravidez, que adotou a cor azul, teve como representantes a Igreja Católica e a Aliança Cristã de Igrejas Evangélicas (ACIERA), que promoveram grandes manifestações nas ruas e missas ao ar livre.
"Hoje a Argentina retrocedeu séculos de civilização e respeito ao direito supremo da vida", reagiu a ACIERA em um comunicado que tem como título "Hoje é um dia triste".
"A madrugada de 30 de dezembro será reconhecida daqui por diante como uma das jornadas mais macabras da história recente", afirmou o grupo Unidade Pró-vida.
Segundo uma pesquisa de 2019 sobre crenças religiosas do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), 62,9% dos argentinos se declaram católicos, 18,9% sem religião e 15,3% evangélicos.
Também nos arredores do Congresso, muitas pessoas contrárias à aprovação da lei aguardaram de joelhos o resultado da votação, recebido com grande decepção. A Argentina aprovou o divórcio em 1987. Depois uma lei de educação sexual integral (2006), uma para o matrimônio igualitário (2010) e uma de identidade de gênero (2012).