Conflito

"As sanções internacionais estão se mostrando insuficientes", diz geógrafo sobre invasão da Rússia à Ucrânia

Tito Lívio Barcellos, geógrafo pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF), concedeu entrevista à Rádio Jornal

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Ana Maria Miranda

Publicado em 24/02/2022 às 9:58 | Atualizado em 24/02/2022 às 11:51
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O geógrafo pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF), Tito Lívio Barcellos, disse nesta quinta-feira (24), em entrevista à Rádio Jornal, que as sanções internacionais à Rússia, após invasão à Ucrânia, foram insuficientes. Para ele, é necessária uma solução que envolva vários membros da comunidade internacional.

 

"A comunidade internacional, ao meu ver, ainda está tendo uma posição muito tímida a respeito do conflito. As sanções internacionais estão se mostrando muito cosméticas, muito insuficientes, porque ela pega elementos específicos, mas não traz um forte impacto na economia russa. (...) É só lembrar que a taxa de inflação da Rússia, com as sanções e com a pandemia, é inferior à do Brasil. Então você tem uma 'gordurinha' criada para que a Rússia consiga suportar pressões por mais tempo. Como se fosse uma formiga estocando comida para o inverno", destacou.

Para o geógrafo, as sanções precisam envolver outros atores "que condenem uma violação de soberania e que proponham uma solução política não apenas para a retirada das tropas russas dessas regiões contestadas, mas também um novo regime de segurança para a Europa e para o Atlântico, ou seja, tem que envolver um acordo entre a Rússia e a Otan para que não ocorram mais tensões desse tipo".

A União Europeia, por exemplo, anunciou sanções - publicadas no Diário Oficial da UE - que consistem no congelamento de bens e na proibição de vistos contra o ministro da Defesa e os chefes militares russos, o chefe de gabinete do Kremlin, o ministro do Desenvolvimento Econômico e a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores.

Já o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou ainda na quarta (23) sanções contra a empresa encarregada de operar o gasoduto Nord Stream 2, que liga a Rússia à Alemanha. A medida foi anunciada após Berlim suspender o controverso gasoduto, um dia antes. No dia anterior, os EUA já tinham tomado medidas contra os bancos e oligarcas russos.

Na madrugada desta quinta-feira (24), a Rússia invadiu a Ucrânia e promoveu bombardeios contra alvos militares em Kiev (capital), Kharkiv e outras cidades no centro e no leste. De acordo com o ministério da Defesa da Rússia, o presidente Vladimir Putin autorizou uma "operação militar". Em mensagem transmitida na televisão, Putin prometeu retaliação a quem interferir na operação. "Qualquer um que tente interferir conosco, ou mais ainda, criar ameaças para nosso país e nosso povo, deve saber que a resposta da Rússia será imediata e o levará a consequências como você nunca experimentou em sua história", declarou.

O pesquisador ressalta que a manutenção do conflito provocará "um custo humano, político, econômico, material, financeiro gigantesco para todos os lados envolvidos" e até para países não envolvidos na situação, em um mundo já impactado pela pandemia da covid-19. "Eles podem sofrer com uma onda de refugiados, de pessoas que vão fugir dos centros urbanos ucranianos pedindo asilo político, pedindo acolhimento nesse países. E até refugiados que podem ir para a Rússia também, como ocorreu em 2014", explicou.

Na entrevista, Tito Lívio Barcellos também comentou o papel do Brasil para lidar com o conflito de forma diplomática. Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro fez visita à Rússia em meio à tensão, e chegou a dizer que o país era "solidário" ao país. "Eu acredito que o Brasil poderá ainda seguir a cartilha histórica do Itamaraty de propor um entendimento entre os dois lados. Realmente a frase de Bolsonaro foi muito mal recebida, até pelas próprias autoridades do ministério de Relações Exteriores", comentou.

Por volta das 10h55 desta quinta, o Itamaraty divulgou nota afirmando que acompanha a ação da Rússia "com grave preocupação" e que o Brasil "apela à suspensão imediata das hostilidades e ao início de negociações conducentes a uma solução diplomática para a questão, com base nos Acordos de Minsk e que leve em conta os legítimos interesses de segurança de todas as partes envolvidas e a proteção da população civil".

"Como membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o Brasil permanece engajado nas discussões multilaterais com vistas a uma solução pacífica, em linha com a tradição diplomática brasileira e na defesa de soluções orientadas pela Carta das Nações Unidas e pelo direito internacional, sobretudo os princípios da não intervenção, da soberania e integridade territorial dos Estados e da solução pacífica das controvérsias", diz o texto.

Confira a entrevista completa com Tito Lívio Barcellos:

Rádio Jornal - Pelo que a gente vem acompanhando, se você pergunta ao povo menos informado com relação à situação que chegamos agora, quase 90% diria que o grande carrasco, o grande errado nessa situação é Putin. É verdade isso?

É algo que todo mundo pensaria a princípio, até porque o país agressor é a Rússia, mas a gente tem que levar em consideração outros elementos para fazer uma análise mais fria, mais completa, para ter um panorama mais amplo da situação. Você tem uma reclamação russa que é legítima, que é não a incorporação da Ucrânia em si, mas se a gente for falar da catástrofe política ocorrida na Ucrânia desde os anos 90 e dos anos 2000, que é o fracasso dos governos ucranianos, as inclinações ocidentalistas que vão ocorrendo nos sucessivos governos ucranianos, que buscam a integração com a União Europeia, que para os russos não teria tanto problema assim. Mas o problema é a integração com a Otan, que é uma aliança militar que foi construída no período da Guerra Fria, onde você tinha outra dinâmica geopolítica internacional, uma aliança feita para dissuadir a União Soviética, mas a União Soviética acabou em 91. Em tese, a Rússia não era para ser uma ameaça. Então é criado o Conselho Otan-Rússia, mas a Otan vai se expandindo sucessivas vezes ao longo dos anos 90 e 2000 e acaba chegando nas fronteiras daquilo que a Rússia chama de sua esfera de influência, que seriam os países da ex-União Soviética.

Rádio Jornal - A Ucrânia informou e confirmou que 40 soldados já morreram. Isso significa que a gente pode estar entrando numa guerra muito sanguinária?

Sim. É importante levar em consideração que Ucrânia é um país com cerca de 48 milhões de habitantes, é o segundo país mais extenso da Europa, e também é uma população similar à da Itália. Então estamos falando de um país que é grande, que tem áreas densamente urbanizadas, muitas cidades com mais de 1 milhão, 2 milhões de habitantes, especialmente no leste, que é onde fica a maior parte dos centros urbanos, das indústrias. Sim, uma ocupação militar teria um custo humano, político, econômico, material, financeiro gigantesco para todos os lados envolvidos. Até para países não envolvidos, como os países da Otan, que buscaram manter o seu apoio para a Ucrânia, mas até o presente momento não fizeram uma intervenção militar direta na região, mas eles podem sofrer com uma onda de refugiados, de pessoas que vão fugir dos centros urbanos ucranianos pedindo asilo político, pedindo acolhimento nesse países. E até refugiados que podem ir para a Rússia também, como ocorreu em 2014. Naquele período do separatismo, muitas pessoas fugiram das áreas rebeldes da Ucrânia buscando refúgio na Rússia, por conta da violência dos ataques, dos bombardeiros. É importante salientar que quarenta mortos, não temos sequer 24 horas de conflito. São muitas informações jogadas e desencontradas, que ainda precisam ser apuradas, então esse número pode ser ainda maior e não está sendo contado as baixas de vida.

Rádio Jornal - O que a comunidade internacional pode fazer para deter esse avanço da Rússia sobre a Ucrânia? O presidente Joe Biden anunciou que apresentará novas sanções. Nós já tivemos a Alemanha, fazendo as restrições ao gasoduto que levaria gás para a Alemanha, mas a Rússia hoje está com uma reserva cambial da ordem de US$ 640 bilhões, então ela poderia sofrer essas sanções internacionais e mesmo assim não ter muitas consequências internamente. Por outro lado, no artigo 5º do Tratado de Washington, há o estabelecimento de que todos os países da Otan são solidários quando um outro país membro for invadido, o que ocorre é que a Ucrânia não é membro da Otan. Qual seria a saída para esse imbróglio?

Realmente, aí entramos num exercício de futurologia, o que é difícil, porque a gente acaba tentando desvendar os próximos movimentos dos países. Muito se falou que poderia ser um blefe essa militarização ostensiva da Rússia na fronteira, só que a partir do momento que novas fases, novas dinâmicas do conflito, da tensão, se encontravam, o comportamento mudava e ficava mais agressivo. Mas a comunidade internacional, ao meu ver, ainda está tendo uma posição muito tímida a respeito do conflito. As sanções internacionais estão se mostrando muito cosméticas, muito insuficientes, porque ela pega elementos específicos, mas não traz um forte impacto na economia russa. As reservas internacionais de 640 bilhões de dólares, investimento em ouro, programas de autossuficiência, menor dependência de importações estrangeiras, substituições de importações, fez a Rússia, a economia russa, se tornar resiliente. É só lembrar que a taxa de inflação da Rússia, com as sanções e com a pandemia, é inferior à do Brasil, que é a terceira maior do G20, só perde para a Turquia e para a Argentina. Então você tem uma "gordurinha" criada para que a Rússia consiga suportar pressões por mais tempo. Como se fosse uma formiga estocando comida para o inverno. É preciso que as sanções não sejam apenas ocidentais, sejam internacionais, envolvam mais atores. Que condenem uma violação de soberania e que proponham uma solução política não apenas para a retirada das tropas russas dessas regiões contestadas, mas também um novo regime de segurança para a Europa e para o Atlântico, ou seja, tem que envolver um acordo entre a Rússia e a Otan para que não ocorram mais tensões desse tipo.

Rádio Jornal - Além desse relativo conforto econômico da Rússia, pode haver problemas para o Ocidente também caso essas sanções sigam adiante. Por exemplo, se o Ocidente decidir boicotar o petróleo da Rússia, há estimativa do mercado de que o barril pode chegar até US$ 125 por alguns meses, fazendo com que a inflação se eleve em muitos países e fazendo também com que haja uma queda do PIB em muitos países do Ocidente. É um problema gigantesco.

Exatamente. Cento e vinte dólares, por exemplo, era o preço do barril do petróleo quando eclodiu a chamada Primavera Árabe, entre 2010 e 2011, em boa parte do mundo árabe e do norte da África, então sabemos o impacto que o preço do petróleo tem, não apenas no preço dos combustíveis, mas também no frete de alimentos e de outras mercadorias que utilizamos. Lembrando que muitos economistas do Brasil falam da possibilidade do preço da gasolina chegar a R$ 10 o litro, e estamos num contexto de reconstrução econômica em meio a uma pandemia que ainda não terminou, especialmente na Europa e na América do Norte, onde você tem grupos antivacina, brigando, realizando protestos, questionando as medidas de restrição de movimento, buscando derrubar leis. Então é um cenário muito difícil para a Europa e para os Estados Unidos, até porque houve um endividamento também. O aumento da dívida pública dos países na pandemia, e a Rússia parece saber explorar isso, saber explorar a debilidade do Ocidente para buscar essa política mais assertiva e mais agressiva na Ucrânia, coisa que não fazia desde 2008 na Geórgia. Mesmo se a gente considerar 2014 na Ucrânia, foi uma situação muito tímida, se aproveitando de convulsões internas da Ucrânia. Agora não, você tem uma política extremamente ativa da Rússia, querendo mostrar autoridade e forçando os seus vizinhos pós-soviéticos de que a integração do Ocidente vai antagonizar os interesses da Rússia.

Rádio Jornal - O presidente Vladimir Putin se queixa de que teria um acordo com o ex-presidente George Bush pai, segundo o qual a Otan não continuaria avançando em direção às fronteiras russas. Esse acordo existiu, e se existiu, porque não está sendo cumprido?

Infelizmente, as reclamações do Putin se baseiam nas declarações verbais de Mikhail Gorbachev com os assessores do presidente George Bush-pai de que a União Soviética dissolveria o Pacto de Varsóvia, retiraria suas tropas da antiga Alemanha Oriental após a unificação, coisa que vai se dar apenas em 1994, ou seja, já na federação russa, e de que a Otan não se expandiria para o leste europeu, não englobaria os novos países do Pacto de Varsóvia. O que acabou ocorrendo? Esse compromisso acabou se dando de maneira verbal, não houve um documento robusto, assinado, para garantir de que a Otan não seria expandida. E acabamos tendo, nos anos 90, as expansões da Otan a partir de 1999, quando englobam a Polônia, a República Tcheca e a Hungria, e depois vão ter novas expansões: 2004, 2007, 2008, 2012, e a última expansão, a mais recente, foi em 2020, englobando a ex-República Iugoslávia de Montenegro. Isso fez com que a Rússia entrasse num sentimento de humilhação nacional e não foi capaz de estabelecer linhas na Europa para que houvesse um pleno entendimento de ambas as partes, para que houvesse um respeito mútuo ao equilíbrio estratégico firmado na Guerra Fria. Então essa política reativa de Putin, reativa até 2008, vai acabar dando lugar a uma política assertiva, proativa, onde o Putin busca desenhar essas novas linhas na Europa para dissuadir qualquer expansão da Otan.

Rádio Jornal - A questão das relações diplomáticas entre Brasil e Ucrânia. Do ponto de vista da embaixada do Brasil em Kiev, as respostas são "fique em casa". O presidente brasileiro esteve na Rússia, apertou a mão de Vladimir Putin e prestou solidariedade, embora sem estender direito o que seria essa solidariedade. O ministro das Relações Exteriores no Brasil, Carlos França, promete para daqui a pouco uma nota. Como deve ser ou qual deve ser a resposta diplomática do Brasil nesse conflito da Rússia com a Ucrânia?

Também é uma pergunta difícil de responder. Eu acredito que o Brasil poderá ainda seguir a cartilha histórica do Itamaraty. Realmente a frase de Bolsonaro dita, 'estamos solidários à Rússia' realmente foi muito mal recebida, até pelas próprias autoridades do ministério de Relações Exteriores, porque isso contraria os princípios da casa em manter, colocar a soberania como algo inviolável e prezar pela resolução política dos conflitos, mas, embora acredito que possa ter uma condenação da invasão russa, mas haverá a ideia de propor um entendimento dos dois lados, uma chamada para desescalamento do conflito, não haverá condenações mais firmes à Rússia em termos de retaliações financeiras, econômicas, até por conta do peso dos fertilizantes, dos combustíveis, de outros minerais estratégicos para indústrias de aviação, para semicondutores, de elementos que o Brasil precisa nesse contexto. Então eu acredito que a posição do Brasil vai ser muito similar ao ocorrido em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e o Governo Dilma - para você ver que isso não é passível de mudanças ideológicas de governo, e sim políticas de Estado. O Brasil, naquele período, decidiu se manter neutro, se manter fora do embate entre as potências. Inclusive foi muito criticado pelo governo Barack Obama por ser um país membro dos Brics e foi cobrado por ter uma posição mais firme contra os interesses russos.

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