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Opinião: entre a pulga e o percevejo está a Constituição brasileira

"Simplesmente não existe cabimento, racionalidade ou pertinência para a cogitação de algo como uma "intervenção militar constitucional". Leia a opinião do advogado Gustavo Henrique de Brito Alves Freire

JC
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Publicado em 05/06/2020 às 15:28 | Atualizado em 03/10/2020 às 9:00
 Pedro França/Agência Senado
Fachada do Palácio do Congresso Nacional, em Brasília, no entardecer - FOTO: Pedro França/Agência Senado

Diz a letra de uma famosa canção infantil da década de 80, ainda hoje entoada, e que, pesquisando, terminei por descobrir que se chamava “A Festa dos Insetos”, que a pulga e o percevejo resolveram um dia fazer serenata embaixo do colchão. Pois, aflito e sem condições identificar quem, entre a pulga e o percevejo, fazia exatamente o que na execução da serenata, o dono do colchão, através do letrista da música, termina por entregar os pontos: “Torce, retorce, procuro, mas não vejo; não sei se é a pulga ou se é o percevejo”.

Pois bem. Em análise sistemática e não-gramatical do dispositivo hospedado no artigo 142 da Constituição Federal em vigor, é exatamente isso o que se acaba por tentar fazer na tentativa de se defender o que, pela própria Constituição, defesa não encontra. Torcê-la e retorcê-la.

Como bem definiu em sua página pessoal no Instagram o professor e membro do MPF, Wellington Cabral Saraiva, as Forças Armadas têm a honrosa missão de atuar como órgão militar de função defensiva, tal como se dá, aliás, em qualquer País democrático do planeta, ao menos os de democracia sincera e não ilusória.

As Forças Armadas não são um Poder, nem como tal foram previstas, daí porque não lhes é dado servir como moderadoras dos demais e aí sim constituídos Poderes. Da mesma maneira, faculdades não formam Advogados, não existe almoço grátis, a covid não é uma virose besta, não há liberdades absolutas e recibo não é nota fiscal, por mais que aqui e ali surja quem conteste essas premissas.

Simplesmente não existe cabimento, racionalidade ou pertinência para a cogitação de algo como uma “intervenção militar constitucional”, ao menos com a Constituição libertária que aí está, sobrevivente de tantas emendas, mais de uma centena delas, há exatos 32 anos, já tendo, portanto, passado há muito da fase de infância e superado também há tempos os dilemas da adolescência, já não contando mais idade para sustos.

A propósito, em estudo publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico do último dia 1º de junho, o quarteto de juristas pernambucanos Marcelo Labanca, João Paulo Allain Teixeira, Glauco Salomão e Gustavo Ferreira Santos, realça não estarem as “(...) Forças Armadas em um lugar neutro no desenho dos poderes, com distanciamento dos três”, isto porque existem para defender o País, sobretudo suas fronteiras, e, ao lado disso, garantir o seu funcionamento no espectro institucional, e não para existir acima dos três Poderes, tanto que foram posicionadas na estrutura do Executivo, sendo seu comandante supremo o Presidente da República (art. 84, inc. XIII).

É verdade que houve nos idos do Brasil Império – repita-se: do Brasil Império – um “Poder Moderador”, que funcionava fazendo as vezes do algodão entre os cristais, harmonizando os demais Poderes, moderando seus conflitos (daí a nomenclatura). Uma experiência que pertence aos livros de História e apenas a eles. Naquele tempo, consubstanciava missão do Imperador (chefe supremo da Nação e seu primeiro representante) exercer tal Poder.

Ora, se o País e seus filhos não hibernaram em sono criogênico e profundo de 1889 para cá, se a forma de governo é até onde se sabe a democracia e se o regime constitucional é até onde se sabe o presidencialista, se Família Real por aqui só a descendência daquela que um dia existiu, é de ser reassegurada, e não posta à prova, a opção feita em cada qual desses quesitos no check list civilizatório pela fonte emanadora de todo o poder, o povo.

Em extenso parecer, de leitura muito oportuna, que recomendo efusivamente, a Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB, sob a condução do membro honorário vitalício Marcus Vinicius Coelho, assim afasta a tese da possibilidade interventiva:

“Se os mecanismos de freios e contrapesos oferecem os instrumentos necessários à resolução de conflitos entre os poderes em tempos de normalidade, em situações de crises agudas que ameacem a própria sobrevivência das instituições, do regime democrático e da ordem constitucional, a possibilidade de recurso a medidas extremas também é regulada pela própria Constituição”.

Portanto, se lastro constitucional não existe, soa no mínimo contraproducente, além de absurdo, alimentar discussão do tipo, ainda mais em um ambiente já tomado por múltiplas crises, com alta do desemprego, vácuo de liderança e por vezes a confusão entre realidade e fantasia (graças à praga das fake news), o que só convém aos que, absortos na má fé ou na ignorância, desdenham das instituições e julgam que, derrubando-as, atingirão o nirvana.

Para além disso, é um debate que não deixa de ser pobre e raso, seja porque, a um, ofende o texto constitucional; seja porque, a dois, não nos retirará da aguda sinuca de bico, inclusive, de perspectivas, em que vivemos.

Disse Rousseau ser mais valioso, e, com isso, preferível, que se tenha o respeito à admiração das pessoas. Pois que se dê o merecido respeito à Constituição, quando mais não seja por tudo o que ela representa. Se não é a perfeição legislada, simboliza o máximo possível no plano normativo para uma época de transição, de fome e sede de liberdade, vinte e um anos depois do nosso mais longo inverno de direitos.

Se a Carta vigente, de um lado, resultou em um texto excessivamente analítico, de outro lado, não abdicou de ser garantista, característica essa, aliás, que, na quadra atual, é o cimento que torna rijo o dique a impedir que a represa rompa e vá a vida por água abaixo, quando então morrerão todos afogados, aí inclusos, os que um dia viram no seu artigo 142 o que ele nunca disse.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire é advogado

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