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Como era Fernando Menezes

Jornalista, que era conhecido como "Vovô Fernando" na redação do JC, faleceu na última quinta-feira (9)

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JC

Publicado em 11/12/2021 às 14:48 | Atualizado em 11/12/2021 às 14:51
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No dia da despedida do meu pai, o padre chamou-me a mim e à minha irmã para saber como era Fernando Menezes. Aí pensei comigo, se eu começar a contar as histórias do meu pai agora vamos perder a missa de sétimo dia. Hoje, tentando me acostumar com a perda, depois de tantas homenagem dos amigos queridos e da imprensa em geral, resolvi mostrar não a trajetória, pois tudo tornou-se bastante público, mas como era Fernando Menezes.

A melhor forma de conhecê-lo é através das suas histórias, aquelas do dia a dia que só podem ser contadas por quem viveu intensamente ao seu lado. Eu começaria perguntando o seguinte: alguém conhece uma pessoa que não dirigia, que nunca usou um celular, assinava todas as folhas do talão de cheque em branco para a esposa e saía de casa de carona sem um tostão no bolso? Pois é, ele era assim. Só a minha mãe tentava explicar como uma pessoa podia recusar um convite para ser procurador do Estado. Na época não havia concurso público, pois uma coisa que não foi divulgada sobre a sua vida, é que papai também era advogado. Quando uma única vez, depois de muito tempo, fui questionar o inusitado episódio, ele me respondeu que achava que aquilo não era certo e que não seria feliz. Foi o suficiente para nunca mais tocar no assunto.

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Apesar de ser um apaixonado por esportes, em especial o futebol, não era propenso a atividades físicas. Papai viveu em dois estágios, parado e andando. Uma certa vez, fui com ele de táxi para o JC, na rua do Imperador. Chovia bastante, ao descer do carro corri para debaixo da marquise, ele veio andando e chegou todo molhado, não aguentei ver aquele quadro e perguntei: "Pai, por que você não correu?" Ele disse, "você correu e chegou cansado e molhado e eu só cheguei molhado". Quando não queria ir em algum lugar, dizia imediatamente, eu passo. E quando ia e queria ir embora, dizia: dei por visto. Quantas vezes o procuramos numa festa e ele já estava em casa vendo um filme ou lendo um livro, duas de suas paixões.

Quando fomos para New York, ele já havia ido algumas vezes. Aluguei uma van com motorista para que ele e minha mãe ficassem mais confortáveis. No primeiro dia de passeio, ele pediu ao motorista que parasse na primeira livraria que encontrou e voltou de lá com o The New York Times, Washington Post, El País, a Bola e outros que não lembro debaixo do braço e perguntou se não podia ficar no Central Park. A quantidade de jornais era para quem iria cumprir prisão perpétua, ao ponto do motorista comentar: “Gente, em toda minha vida eu nunca li esta quantidade de jornais”. Seguimos o passeio e combinamos de voltar para buscá-lo na hora do almoço, mas nos atrasamos bastante, e ele foi o único que não se incomodou com o atraso, pois estava no mesmo lugar que o deixamos mergulhado na sua leitura.

Papai presenteava os amigos com coisas extremamente particularizadas. Costumava ficar editando músicas por horas nos gravadores de fita cassetes. Para cada amigo, uma seleção de acordo com o gosto musical da pessoa. Era um trabalho imenso. Uma certa vez, minha mãe caiu na inocência de deixar com ele a responsabilidade de comprar o presente para Zé Paulo Cavalcanti. Claro que aquilo não ia dar certo. Pois bem, na hora de entrar no carro para ir pra festa ele chegou com uma panela de cuscuz ensopado para desespero da minha mãe.



É evidente que meu pai não se encaixava mais no formato deste mundo de hoje. Não sou de me queixar da vida, meu pai viveu rigorosamente do jeito que queria, mas acho que ela podia ter feito diferente, pois tirou dele o que tinha de melhor que era sua capacidade intelectual, de conviver sistematicamente com os amigos e de poder contar suas histórias. Fui uma pessoa privilegiada, só tenho a agradecer o pai que tive, os exemplos por ele deixado e de poder conviver tantos anos com uma pessoa que foi referência pra todos e que só fez o bem. No seu último dia, quando a enfermeira me chamou para ir até o quarto porque os seus sinais vitais estavam baixando drasticamente, ele já não estava mais com a gente, mas eu juro que ouvi claramente ele dizer: filho, dei por visto.

Henrique Menezes é publicitário e filho de Fernando Menezes.


*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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