*Por Gustavo Henrique de Brito Alves
Comecemos o bate-papo pelo começo. Não se deve perder o fio da meada. Na escola também da vida e do aprendizado cotidiano.
Destina-se o Inquérito 4.781-DF, popularmente conhecido como “Inquérito das Fake News”, que corre no Supremo Tribunal Federal sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, a apurar a propagação de "notícias" fraudulentas plantadas com o afã de tentar desestabilizar a ordem democrática no País por meio de ataques ao Poder Judiciário.
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As aspas na palavra pluralizada “notícias” não são aleatórias.
Eis o tema da atualidade, tanto nos meios de comunicação, quanto nos círculos jurídicos, e sobre o qual, todos, com raras exceções, têm seu parecer pronto na ponta da língua. Há quem considere a medida uma jabuticaba jurídica, uma excrescência e uma teratologia.Há, contudo, quem a enxergue como a banana, que é outra fruta, só que rica em potássio, mineral bom para fortalecer os músculos. Logo, aprovam a iniciativa.
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Este pomo da discórdia surgiu por ato do Presidente do STF. Não é uma jabuticaba porque houve o mesmo modus procedendi no Habeas Corpus 152.720, onde se averiguou o abuso no uso de algemas contra o ex-governador carioca Sérgio Cabral (Inq. 4.696). Também não lhe falece previsão legal. Concorde-se ou não com o que nele está escrito, vigora e é válido o artigo 43 do Regimento Interno daquele Tribunal.
Já a determinação de ofício pelo Relator de diligências investigativas encontra ressonância no Código de Processo Penal, notadamente no seu artigo 242. De novo: goste-se ou não. O debate só não pode ser feito com a influência rasputiniana das paixões políticas; nessas horas desanda e dificilmente deságua em bom termo. Nas audiências da Lava Jato, por exemplo, muito mais fazia perguntas aos depoentes o então Juiz Sérgio Moro do que o representante do Ministério Público.
Como bem lembrado pelo professor Lênio Streck em sua coluna no Consultor Jurídico de 28/05/2020, o que não cabe é o Ministério Público pleitear, ao invés da condição de ser parte no processo penal, a de ser um órgão monopolista de controle sobre a legalidade das diligências realizadas na investigação preliminar, uma espécie, portanto, de “juiz das garantias”. Palavras do doutrinador: “Mesmo tendo um papel destacado na instauração da ação penal, isso não o faz senhor exclusivo da investigação preliminar no processo penal acusatório, conforme já explicado”. Aí, pois, é que está o “x” da questão.
Aliás, esse tipo de atribuição aos Ministros do Supremo os autoriza, inclusive, a determinar o arquivamento do Inquérito, mesmo sem requisitório da PGR. Basta que se faça uma leitura, de novo, liberta de paixões políticas, do artigo 231, parágrafo quarto, do Regimento Interno do STF. Norma válida e vigente, como sintetiza Streck, ou seja, eficaz. Goste-se dela ou se lhe devote ojeriza e repúdio, não importa.
É irrefutável que o Inquérito 4.781 não surgiu por combustão espontânea, mas que encontra um contexto a explicá-lo, que se reduz à locução “contempt of court”, ou seja,o cometimento de ato tendente a ofender um juiz ou tribunal na administração da justiça, ou a diminuir sua autoridade ou dignidade. Ou será que as fake news não são um método de ataque? São traduções da liberdade de expressão do pensamento? Coibi-las seria censura? Penso eu que não, não e não.
A par de ser, como nos parece, constitucional, o Inquérito 4.781 tem trazido a baila alguma problematicidade e aí, compreensivelmente, abrem-se os flancos para a crítica aí sim procedente, o que é salutar como ferramenta de controle social. Não dá, por exemplo, para negar às defesas dos investigados acesso aos autos e aos documentos que os aparelham, até com âncoras na Súmula Vinculante 14 do próprio STF. Outro escorregão foi o episódio em que o Relator determinou a retirada do ar de reportagem publicada pelo site “O Antagonista” e pela revista digital “Crusoé” que mencionava o Presidente do STF, Ministro Toffoli.
No cômputo geral, porém,observado vai e vem da gangorra de acertos e equívocos, sempre a se mover, o certo é que o Inquérito 4.781, em que pese divisor de opiniões, da doença da inconstitucionalidade não padece. Nesse diapasão, o próprio MPF já se manifestou, conquanto há pouco, mais recentemente, tenha mudado de ideia.
As fake news são uma força extremamente corrosiva das bases civilizatórias. Há pesquisa do Massaschusetts Institute of Tecnology apontando que notícias falsas alcançam mais gente e espalham-se com mais rapidez do que notícias verdadeiras.
Começo agora a tessitura do fecho dessas reflexões. De partida, faço referência a matéria do jornal O Estado de São Paulo, intitulada “Senso crítico é arma para combater fake news”, de Marina Dayrell, Matheus Riga e Pedro Ramos, no trecho onde se lê, citando a Editora Executiva da Agência de checagem “Aos Fatos” (aosfatos.org), Tai Nalon, que a solução está na educação. E, em trecho outro, exortando-se a uma“cultura de questionamento”, nas palavras do professor da PUC-RJ, Daniel Schwabe.
Em sua coluna “Intervenção” publicada na revista Veja de 29/03/2018, Jerônimo Teixeira, conta uma curiosidade, a de que as fakes news remontam à antiguidade romana. Faz alusão à obra de Shakespeare e à história de Cina, dizendo-nos o seguinte:
"Entre os conspiradores, havia um romano chamado Cina. Ocorre que ele tinha um homônimo na cidade, um poeta, que sequer chegara perto da conspiração para assassinar César – aliás, tinha simpatia pelo morto. A turba topou com o pobre poeta na rua e o linchou, convencida de que ele seria Cina, o conspirador. Shakespeare enfeita o episódio com alguns diálogos muito espirituosos e lhe dá um desfecho ao mesmo tempo hilário e perturbador. ‘Eu sou Cina, o poeta!’, esclarece a pobre vítima. Um plebeu responde: ‘Arrebentem-no por seus maus versos!’. Cina insiste em afirmar que não é o conspirador, que está sendo confundido com outra pessoa. ‘Não interessa’, diz o mesmo plebeu. ‘O nome dele é Cina; abram seu coração pra lhe arrancar o nome e depois o escorracem’.Cina, o poeta, é morto pelo povo, e o povo sabe muito bem que ele não é Cina, o conspirador”.
Jerônimo Teixeira, então, encerra: “Um único cidadão romano que tentasse avisar a turba que Cina não é o conspirador, que Cina não apunhalou César, que Cina é só um inofensivo poeta – essa voz isolada conseguiria impedir o linchamento? Talvez não. Mas não custaria tentar”.
Pois é. O ponto aí reside.Houvesse tão arraigada consciência disso tudo e não estaríamos nós a controverter, alguns quase às vias de fato, sobre se pode ou não o Guardião da Constituição Federal abrir e conduzir Inquéritos. Aí a nossa real tragédia.
Com a palavra, o Plenário do Supremo.
*Gustavo Henrique de Brito Alves é advogado.
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