Que se dê um destino digno à obra do gênio Naná Vasconcelos
"Em respeito à imortalidade da arte, o descuido, o abandono, a irresponsabilidade social com a cultura são crimes de lesa-pátria: a casa de Naná, assim como a casa de Capiba, abriga valioso patrimônio que enlaça gerações no destino comum". Leia o artigo de Gustavo Krause
A matéria do JC, 06/01/22, sintetiza na manchete “Não existe interesse na obra de Naná no Brasil”, o sentimento de Patrícia Vasconcelos, viúva de Naná Vasconcelos é o mesmo de todas as pessoas que admiravam a notável obra do marido.
Morando nos Estados Unidos, Patrícia retornou para retirar da sua antiga residência (Naná, apesar da doçura que lhe era peculiar, dizia triste verdade, quando se apresentava em shows internacionais: “Eu sou um Brasil que o Brasil não conhece”. De fato, vindo das sombras da periferia de Olinda, o “negrinho” de mãos buliçosas não deixava em paz penicos, panelas e caçarolas bem cuidadas pelo zelo da mãe D. Petronila.) todo acervo do percussionista que ficará guardado em depósito sem futuro definido (instrumentos, roupas de show, fotografias, artigos de jornais, prêmios, lembranças de viagem pelo mundo).
Com onze anos, recebeu de presente do pai uma bongô, maracas e um afoxé. O presente era um passaporte para o fascinante mundo das artes e da revogação de fronteiras, quando Naná se tornou um reconhecido gênio da música. Sempre “na dele” tinha entre frases antológicas a de que “Fama está na cabeça, na cabeça de camarão”.
Motivos não lhe faltaram para a fama e para a perpetuação de sua memória. O percussionista indiano Trilok Gurtu o reverenciava como o Paxá; a revista Down Beat, dedicada ao jazz, o elegeu o melhor percussionista do mundo oito vezes e, por oito vezes consecutivas ganhou o prêmio Grammy; o cineasta italiano Bernard Bertolucci não admitia que chamassem Naná de músico, mas sim de “A música”.
Topei com Naná, um sábado pela manhã, cumprindo a sina prescrita de Vinicius de Moraes: “Nunca fiz amigos, bebendo leite” ou, “numa leiteria”. Foi na Praça da Jaqueira no “Trailer da Sayonara”. Isolado e tímido, tomei coragem e ofereci a ele o brinde de excelente cachaça. Ele aceitou e ali nasceu a curiosa amizade de “amigos velhos” com a afetividade equivalente de velhos amigos que nem a morte apaga.
Sobre ele escrevi dois artigos para o JC: “Afinal, quem é o Juvenal?” (nome de batismo: Juvenal de Holanda Vasconcelos”) e o dolorido texto “O Maracacéu”, escrito no avião, em retorno antecipado de Brasília para chegar a tempo do velório na Assembleia Legislativa.
No “Maracacéu”, ele usou uma batida transcendental que traduzia a musicalidade do céu: o Amor. Tudo mais é consequência da sabedoria de Sêneca: “A arte é longa, a vida é breve”.
Em respeito à imortalidade da arte, o descuido, o abandono, a irresponsabilidade social com a cultura são crimes de lesa-pátria: a casa de Naná, assim como a casa de Capiba, abriga valioso patrimônio que enlaça gerações no destino comum.
Que se dê um destino digno à obra do gênio.
Viva Naná!
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco