OPINIÃO

Além de dois, existem mais

Mais e mais modelos de composição familiar surgirão para contemplar a diversidade. Não é papel do Direito de Família contestá-los ou cerceá-los, mas cumprir aquilo que dele se espera: o respeito à dignidade e ao direito de escolha

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GISELE MARTORELLI

Publicado em 09/11/2023 às 0:00 | Atualizado em 09/11/2023 às 11:26
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Apesar de ainda serem motivo de estranhamento e controvérsia, as relações não monogâmicas, acordadas e consentidas, são tão antigas quanto a própria história da humanidade. Quase nenhuma surpresa causa a formação dos triângulos, quadriláteros ou qualquer forma geométrica amorosa em que uma ou mais partes desconhecem a existência dos outros componentes. Podemos, então, inferir que o que arregala os olhos da sociedade é menos o compartilhamento afetivo e sexual e mais o fato de fazê-lo aberta e assumidamente.

Na seara do poliamor, o assunto mais palpitante ocorrido recentemente (28/08/2023) foi a decisão do juiz da segunda Vara de Família e Sucessões da Comarca de Novo Hamburgo, Região Metropolitana de Porto Alegre, reconhecendo a união estável entre duas mulheres e um homem. Para fundamentar seu entendimento, o magistrado Gustavo Antonello resumiu que a união dos três é "revestida de publicidade, continuidade, afetividade e com o objetivo de constituir uma família e de buscar a felicidade". Ou seja: é de conhecimento público, é estável, ininterrupta, sustentada por laços amorosos com intenção de ampliá-los até o surgimento da prole. A definição mais tradicional da felicidade que se busca em um núcleo familiar.

No exemplo citado, o bebê gestado por uma das mulheres do trisal poderá trazer em sua certidão de nascimento o nome do pai e das duas mães. A multiparentalidade tem sido contemplada em outras circunstâncias, como nos casos dos filhos socioafetivos, que se tornarão legalmente ligados tanto aos genitores biológicos quanto aos de criação, quer seja em questão de herança, de pensão alimentícia e de registro civil.

Lançada em 1975 por Raul Seixas no álbum Novo Aeon, a balada A Maçã soa como um ponto fora da curva no repertório do artista baiano. Cantada num registro que não era exatamente o mais empregado por Raulzito, a letra da canção entra em sintonia com a voz do intérprete ao transmitir, simultaneamente, a perplexidade, a aceitação e o desapego de quem entendeu que, nem sempre, o amor se expressa pela exclusividade.

"Amor só dura em liberdade

O ciúme é só vaidade

Sofro mas eu vou te libertar

O que é que eu quero

Se eu te privo do que eu mais venero

Que é a beleza de deitar"

Mudanças acontecem o tempo todo ao nosso redor. A maioria delas, embora imperceptíveis a ponto de serem consideradas invisíveis, existe a despeito de nossa autorização ou vontade. A grama do nosso jardim pode crescer até um centímetro por dia sem que nos apercebamos; o orvalho que umedeceu os bancos da praça não mais estará ali se despertamos tarde; de repente, passamos a não mais aceitar que o feminino seja absorvido pelo masculino: se existem dois gêneros numa plateia é obrigatório referir-se a "todas" e "todos". E, ainda mais necessário, criar um gênero neutro para incluir quem aí não se encaixa: "todes".

Como em nenhuma outra área, as questões que envolvem a família são sempre eivadas de considerações morais e/ou religiosas.

"Se eu te amo e tu me amas

E outro vem quando tu chamas

Como poderei te condenar

Infinita é tua beleza

Como podes ficar presa

Que nem santa num altar?"

No entanto, cabe aos profissionais do Direito de Família, como a área que regula as relações entre pessoas unidas pelo casamento, união estável ou parentesco, estarem atentos para o sopro dos novos ventos, que trazem outros tempos e costumes. A diversidade, a fluidez, a busca pela fidelidade a quem se é, e não ao que foi petrificado pelo conservadorismo, é a grama em nosso jardim: pode ser aparada, mas vai voltar a crescer.

"Quando eu te escolhi

Para morar junto de mim

Eu quis ser tua alma

Ter seu corpo, tudo enfim

Mas compreendi

Que além de dois, existem mais"

Mais e mais modelos de composição familiar surgirão para contemplar a diversidade. Não é papel do Direito de Família contestá-los ou cerceá-los, mas cumprir aquilo que dele se espera: o respeito à dignidade e ao direito de escolha.

Gisele Martorelli, advogada

 

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