OPINIÃO

A advocacia e a (crescente) liderança feminina

Se, portanto, nós é dado o desafio persistente de não estagnar no tempo, que, então, façamos a escolha pela real concepção filosófica de humanidade, aquela segundo a qual o Sol nasce e se põe para todos,

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Gustavo Henrique de Brito Alves Freire

Publicado em 25/01/2024 às 0:00 | Atualizado em 26/01/2024 às 11:48
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O ano é 1875. O local, Macaé, no Estado do Rio de Janeiro. Nasce Myrthes Gomes de Campos. Depois de obter o Bacharelado em Direito, no ano seguinte, estreou como defensora perante o Tribunal do Júri, inscrita de modo não definitivo no Instituto dos Advogados, embrião da OAB. Atuou em prol de réu acusado de agressão a terceiro com golpes de navalha, sem desfecho morte. Comprovando denso domínio da legislação, contra um Promotor considerado imbatível, Myrthes virou sensação, ganhou os Jurados e logrou a absolvição do cliente.
Vivia-se então a ideia de que a advocacia, por influência do Direito Romano, era um “ofício viril”, não surpreendendo que, desde 1843, nenhuma mulher houvesse postulado o ingresso na corporação. A inscrição definitiva de Myrthes lhe foi assegurada apenas em 1906, quase uma década depois da sua primeira tentativa.
Precursora de Myrthes, houve Esperança Garcia. Negra, mãe de dois filhos, católica, alfabetizada, porém, na essência, escrava. Redigiu em 1770 uma carta denúncia de vinte linhas ao então governador da capitania do Piauí, denunciando a realidade de maus tratos que enfrentava, assim como suas companheiras na Fazenda de Algodões (pertencente aos padres jesuítas). Não há dúvidas da natureza da carta: era e é uma petição jurídica, contendo endereço, identificação, narrativa factual, fundamentação técnica e pedido.
Os referenciais de resiliência de duas figuras tão notáveis encontram na atualidade revigorada ressonância. A mulher é numericamente maioria entre os advogados brasileiros, porém, tal circunstância não se projeta com efetividade nos espaços de poder, cuja ocupação precisa começar a ser vista com a mesma naturalidade da masculina, naturalidade, enfim, culturalizada, que permita à mulher sentir-se representada, além de inspirar e estimular que sua jornada se dê sem retrocessos.
O certo é que, no paradoxal Brasil em que, até bem pouco tempo, matar na legítima defesa da honra foi tese aceita para inocentar em juízo, os grandes nós para desatar não pressupõem novas legislações, mas o implemento da legislação que já existe.
No caso, é também assim. Vigora há quase três anos na OAB a Resolução nº 05/2020, que estipula a paridade de gênero (50%) e a política de cotas raciais para negros (30%) na formação das chapas nos certames da instituição. Na prática, no ciclo eleitoral seguinte ao da aprovação da mudança, apenas 5 das 27 Presidências Seccionais passaram a ser ocupadas por mulheres, donde visível o quanto ainda existe a avançar.
Quando se fixa o olhar no paradigma da Medalha Ruy Barbosa, principal honraria conferida pela OAB, é inescapável a constatação de que uma única mulher apenas a recebeu até aqui: a gaúcha Cléa Carpi, no ano de 2017, em um universo de vinte agraciados. Doutora Cléa contribui ativamente até hoje com a entidade ao ponto de ser impossível imaginá-la sem ela e vice-versa. Seu
exemplo é uma ode abolicionista. Por isso não só precisa, como impõe-se ser reverberado, ou a própria Medalha deixa de se justificar.
A luta feminina é uma luta por respeito e dignidade, não pela substituição do homem, mas por um caminhar lado a lado com ele. É uma luta de doação com a mesma intensidade, tanto do intelecto como da capacidade laborativa. O gênero não é o que desiguala, nem raça, nem orientação sexual. O que desiguala é invisibilizar. É não reagir.
Daniela Borges, ex-Presidenta da OAB/BA, foi no ponto ao afirmar: “Existem mulheres que vivem o dia a dia da advocacia e sabem os seus desafios. Se elas vivem e sabem a realidade, elas estão preparadas para representar a advocacia nos conselhos e nos órgãos diretivos” (Migalhas, 8/3/21). Imbuída do mesmo espírito, Cora Coralina, em seu poema “Ressalva”, escreveu: “Eu sou a mulher que fez a escalada da montanha da vida, removendo pedras e plantando flores”.
Se, portanto, nós é dado o desafio persistente de não estagnar no tempo, que, então, façamos a escolha pela real concepção filosófica de humanidade, aquela segundo a qual o Sol nasce e se põe para todos, logo, que todos merecemos contemplá-lo. A liderança feminina, inclusive, no Direito, se traduz sinônimo disso. Que seja sempre farol.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

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