Nos últimos meses, uma cena virou comum nos semáforos do Recife. Cartazes com pedidos de ajuda viraram a esperança de conseguir o sustento para parte da população em desocupada e desassistida por benefícios sociais, empurrada ao desemprego com a pandemia do novo coronavírus.
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Mais de 8,9 milhões de brasileiros perderam seu trabalho no segundo trimestre deste ano - recuo de 9,6% no número de pessoas ocupadas, o menor desde 2012 segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Com a dura realidade, indivíduos de perfis e vidas diferentes têm recorrido ao recurso como última tentativa para encontrar ajuda, alimento ou trabalho. A reportagem do JC percorreu a cidade em busca dessas pessoas. Essas são suas histórias.
Tempo é dinheiro
Entre um sinal verde e vermelho, Santiago Gonçalves da Silva, de 36 anos, atravessa o cruzamento da Agamenon Magalhães com a Avenida Rui Barbosa, área central do Recife. O ponto é disputado. “Não tenho tempo. O tempo que eu estou falando com vocês, é o que tenho para pedir ajuda. Enquanto estou aqui, tem outros dois esperando para ficar no meu lugar”, falou, apressadamente, à reportagem. A conversa só aconteceu quando Santiago estava de saída para almoçar em um dos restaurantes populares que servem refeições.
Nas suas mãos, carrega um pedido de socorro. Ele precisa de um emprego para sair novamente das ruas, onde mora desde a chegada da covid-19 ao Estado. Há cerca de três meses, ele perdeu o posto de ajudante em uma vidraçaria e os bicos com os barraqueiros da orla. “Todo dia eu tinha serviço. Depois, com esse negócio de pandemia, fechou praia, reduziram funcionários por aí”, disse. “Eu não consegui emprego mais em canto nenhum. Só perdendo tempo procurando emprego sem ganhar nada, aqui (sinal) ganho pelo menos alguma coisa, e as pessoas veem que o cara está desempregado e oferecem um emprego.”
Foi vendo outras pessoas conseguindo emprego que ele teve a ideia de fazer o cartaz. As ofertas, inclusive, chegaram, mas ainda não se concretizaram. “Ficam procurando se o cara tem um número de telefone, e eu to sem. Aí dizem: pronto, eu passo por aqui. Mas até agora não passou”.
Agora, ele está vivendo da ajuda que recebe no sinal, o que não chega a ser suficiente. Santiago chegou a receber uma parcela do auxílio emergencial, como inscrito no CadÚnico, mas o benefício e o cadastro foram cortados sem explicações. “Fui no Creas e a mulher disse que eu teria que fazer uma denúncia no Ministério Público’.” Solução na qual se mostrou desconfiado. Para quem o tempo tanto vale, os minutos são uma regalia que não pode dispensar. “Não fui, não. Para perder tempo, também?”
Ajuda tirou família da rua
O dia começa cedo para Wesley Charles, 32, e Patrícia Cícera da Silva, 37, por volta das 5h. É a hora que o casal chega à Rua Joaquim Nabuco, na Madalena, onde fazem um apelo parecido. Ali, com mensagens escritas em pedaços de isopor, eles pedem alimento e uma oportunidade de emprego. “Estou com fome e preciso de sua ajuda”, lê-se na placa, na qual também mencionam os dois filhos.
Eles não puderam contar com os R$ 600 do governo federal porque, na hora da inscrição, os CPFs deram inválidos. Mas o apoio que têm recebido das pessoas que passam pelo local fez diferença grande.
“Eu sempre morei na rua. Morava na (no centro da) cidade. De uns cinco anos para cá, desci para o lado de cá, para a Madalena. Vi a turma todinha com placa e resolvi botar para ver como vai esse negócio. E dá para arrumar um trocado. Com esse trocado, a gente alugou um barraco para sair da rua”, revelou o homem. Vai completar um mês que a família não dorme mais ao relento.
Na nova casa, em San Martín, na Zona Oeste, ainda faltam alguns utensílios. “A gente precisa de uma geladeira, botijão, e panela ainda não tem. A gente está usando essas latas para fazer comida.”
O desemprego também faz parte da história de Wesley. Há alguns anos, trabalhou como copeiro no Libório, restaurante que fechou na Zona Norte. “Depois de lá não achei nada. Consegui fazer um curso de pintura e textura pela prefeitura de Jaboatão (dos Guararapes). Ainda fiz uma entrevista em Jaboatão. Fiz exame, tudinho. Mas fiquei só em espera”, afirmou.
"É minha salvação"
A alguns quilômetros, no cruzamento da Avenida Rui Barbosa com a Rua Esmeraldino Bandeira, na Zona Norte, a reportagem encontrou Eliane Maria dos Santos, de 58 anos. Desde que o marido morreu, a senhora sustenta uma casa com duas filhas e um neto adolescentes no Morro da Conceição, também na Zona Norte.
A missão não é fácil, já que não possui renda alguma. Eliane não recebe aposentadoria, Bolsa Família ou qualquer outro benefício, e tampouco foi aprovada no auxílio emergencial. "Meu marido também não era aposentado, não tinha nada, vivia de bico. Fiquei sem direito a nada", revelou.
O jeito tem sido contar com a solidariedade dos transeuntes. "Tenho criança pequena. Tenho que pedir mesmo. Às vezes arrumo uma cesta básica, arrumo um trocadinho para comprar carne. Vou inteirando. É minha salvação", relatou.
Por conta da pandemia, Eliane passou alguns dias afastada das ruas, mas voltou há cerca de 15 dias. “Estava faltando as coisas em casa. Tinha que voltar.”
A placa que leva, já surrada, foi feita por Betânia Maria da Silva, 61, que mora na mesma rua cerca de um ano atrás. “Conheço ela há mais de 20 anos. Ela precisava. Todo mundo tem um meio de vida”, falou.
Vulnerabilidade atravessa gerações
A vulnerabilidade atinge também os mais jovens. Leandro Torres, de 21 anos, ficou sem trabalho após a paralisação das atividades econômicas suscitada pelo coronavírus. “Eu encostava carro. Aí com esse negócio da pandemia, o restaurante que eu tava fechou”, disse.
A inspiração veio de um primo, que confeccionou um cartaz para pedir ajuda. “Eu vi e vim também. É um pouquinho vergonhoso, mas a pessoa tem que fazer isso”, contou o rapaz, que falou com a reportagem na Avenida Parnamirim, na Zona Norte.
“A turma começou a ajudar, dar dinheiro, alimento, dar roupa. Tem uns que não dá, nem olha, já fica xingando a pessoa: ‘vai trabalhar, você está jovem’. Mas vou trabalhar onde, com esse coronavírus? É melhor (pedir) que fazer coisa errada”
Dos 15 aos 18 anos, Leandro ficou em privação em uma unidade socioeducativa pelo crime de tráfico. Hoje, não pensa mais nisso. “Não quero voltar, não. Deus me livre. Prefiro estar aqui, sendo humilhado, a turma vendo, xingando, do que voltar para ali”, afirmou.
Ele mora na comunidade do Detran, na Iputinga, Zona Oeste, na casa do irmão, que está preso. No momento, Leandro se organiza para começar a trabalhar como entregador. “Tenho uma bicicleta, mas está quebrada. Vou ajeitar e comprar um celular”, espera.
Cresce mendicância, população de rua se mantém, diz prefeitura
A população de rua não cresceu durante a pandemia, mas, com o desemprego aumentado, mais pessoas com residência têm recorrido à mendicância como forma de garantir o sustento, disse a secretária de Desenvolvimento Social, Juventude, Política sobre Drogas e Direitos Humanos, Geruza Flizardo.
Na última contagem, no fim do ano passado, a pasta contabilizou aproximadamente 1.600 pessoas vivendo em situação de rua. “Os dados de acompanhamento não mostram aumento. A gente tem dois centros e sete equipes de abordagem social, e (os moradores de rua) são as mesmas pessoas que a gente já conhecia”, falou.
Os serviços que já existiam foram mantidos na pandemia, e outras iniciativas foram implantados. Veja abaixo.
Já o público que tem casa mas está em situação de vulnerabilidade pode acessar os serviços dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas).
“O Cras é voltado para a prevenção. A gente avalia se eh um caos de receber algum benefício, cesta básica”, explicou a secretária. “Creas é mais para quando há algum direito violado.”
Serviços para população de rua no Recife:
- Restaurantes populares: a cidade possui, desde dezembro de 2019, dois equipamentos para fornecer gratuitamente almoço e jantar para a população em situação de rua. No entanto, por conta do coronavírus, a unidade Naíde Teodósio, em Santo Amaro, foi fechada, e os atendimentos foram concentrados na unidade Josué de Castro, em São José. Entregas itinerantes também estão sendo feitas para alcançar a população de outras regiões.
- Centros de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (Centros POPs): Os dois centros oferecem apoio social aos usuários, banho, lavagem de roupa, acompanhamento da rede socioassistencial, encaminhamento para os demais serviços da rede de cuidados e entrega de lanches. O Centro POP Neuza Gomes é localizado na Madalena, e o Centro POP Glória, em Santo Amaro.
- Serviço Especializado de Abordagem Social de Rua (SEAS): equipes itinerantes acompanham, dia e noite, as pessoas em vulnerabilidade em seus locais de moradia e proteção nas ruas da cidade. Os educadores sociais abordam e conversam com as pessoas para criarem vínculos e encaminhá-las para um abrigo ou apresentar a rede de serviços de apoio.
- Abrigos: A prefeitura gerencia um abrigo noturno e mais 13 casas de acolhida.
Iniciativas criadas durante pandemia:
- Abrigo Emergencial: Uma estrutura foi aberta para pessoas que apresentaram sintomas ou foram confirmados em covid, mas não precisavam de internamento, passarem o período de isolamento.
- Testagem: Em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde, 900 pessoas em situação de rua foram testadas para a covid-19. Apenas 4 tiveram um diagnóstico positivo. Dessas, duas já estavam recuperadas, e duas foram para o isolamento.
- Saúde: a secretaria está ofertando cuidados de higiene e vacinação, além de entregar kits com álcool em gel e máscara.
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